Desço, fecho o carro à chave, vou-me à aventura do meu código bancário. Estão três pessoas aguardando vez, dois homens e uma mulher. Embora muito mais enroupados do que eu, tiritam como ovelhas tosquiadas. E ainda querem eles ser europeus! (...) Tenho, sobre mim, os céus da Europa unida, os sinos das suas catedrais góticas, a profunda nomenclatura da outra pátria que aos poucos se sobrepõe às razões históricas do meu país. Estamos todos a partir, a deixar de ser, a despatriar-nos. (...)
Quando chega a minha vez, aproximo-me da máquina, introduzo nela um dos cartões, e é como se a estivesse saudando. O olho luminoso que de dentro me espia hesita durante os breves segundos de uma ponderação automática, electrónica. Logo a seguir, surge no ecrã luminoso a indicação do levantamento indisponível. Não adianta alvoroçar-me nas razões da minha geração perdida entre o estudo e o progresso dos mecanismos vindos de fora, do outro lado do nosso tempo do vazio. Afinal esta máquina é um ser vivo como eu, mas bem mais complacente e educado. E honesto e bondoso e solícito. Pede-me as suas desculpas, aconselha-me a que me dirija à dependência bancária mais próxima. Se eu fosse um indivíduo colérico preconceituoso e intolerante para com a máquina e agora desatasse para aqui a insultá-la, ainda assim ela se manteria silenciosa impassível e honrada perante a insolência dos meus impropérios. Na Inglaterra, os soldados da monarquia comportam-se exactamente como estes mecanismos electrónicos. Há quem os belisque, quem lhes faça caretas, quem aos seus ouvidos conte anedotas obscenas - mas os soldados da rainha de Inglaterra são também máquinas amestradas, crocodilos hipnotizados, cidadãos europeus que se deixaram adormecer nos turnos de sentinela das suas vigias, sob os longos céus vizinhos da confederação.
Regresso ao carro sem nenhuma indignação. Como os outros, vou-me pouco a pouco resignando aos ventos da minha condição europeia, continental.
João de Melo; O Homem Suspenso
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