segunda-feira, 29 de agosto de 2011

musa fugitiva

Liquidificou-se nas minhas mãos, escorregou por entre os meus dedos, evaporou-se no chão.
Fugiu de mim sem que eu a pudesse segurar no peito e enamorar.
Tal como uma avalanche que engole toda a excitação da alma, que faz os dedos fraquejar de tanto prazer.
Que nem uma dançarina, cujos movimentos corporais hipnotizam uma mente cientificamente devassa, brincou com os meus pensamentos e agitou as células do meu ser. Apagou a sua presença em mim e esvoaçou em lenços de seda por entre os seus longos cabelos serpenteados.
Tal qual uma onda que vai crescendo à medida que se aproxima da costa e, ao chegar até mim, se dissolve.

sábado, 27 de agosto de 2011

o dia em que o mundo não me viu

Conteúdo para Adultos


Cortei com fervor as paredes que te iluminavam. Chorei cada sombra que me esmagava na sua queda.
Queda fiquei. Ficando te amei. Te amando odiei. Odiando chorei. Chorando gritei. Gritando rasguei. Cortei. Roubei. Matei.
As minhas unhas finquei nesse tecido abusador e com a força dos meus braços fiz as minhas mãos arrancarem todo o pudor de ti, findando a tua dignidade e o meu sofrimento.
Os meus pulmões fizeram o meu tórax inchar e recolher-se, num compasso sexual.
E, naquela moldura magicamente cantante, eu amei-te como ninguém alguma vez o tinha feito.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Bon Jovi: What Do You Got?


«Everybody wants something,
Just a little more.
We are making a living
But what are we living for?

A rich man or a poor man,
A pawn or a king:
You can live on the street,
You can rule the whole world,
But you do not mean one damn thing.

What do you got, if you ain't got love?
Whatever you got, it just ain't enough
.
You are walking the road, but you are going nowhere.
You are trying to find your way home, but there is no one there.

Who do you hold
In the dark of night?
You want to give up,
But it is worth the fight:
You have all the things that you have been dreaming of.

If you ain't got someone,
You're afraid to lose.
Everybody needs just one,
Someone,
To tell them the truth.

Maybe I am a dreamer,
But I still believe:
I believe in hope,
I believe that change
Can get us off of our knees. (...)

If you ain't got love, it is all just keeping score.
If you ain't got love, what the hell we doing it for?

I do not want to have to talk about it.
How many songs have I got to sing about it?
How long are you going to live without it?
Why does some somewhere have to doubt it?
Someday you will figure it out. (...)»

domingo, 21 de agosto de 2011

horas extraordinárias


Quando chegares a casa avisa-me, dizia o mostrador do seu telemóvel.
Ainda pensou em telefonar a avisar que tinha saído agora do trabalho e que estava a caminho de casa. Lembrou-se, no entanto, de ter ficado horas extraordinárias encafuada naquele laboratório e de ter perdido a noção do tempo.
Quatro e meia da noite, viu. Cinco horas após ter recebido aquela mensagem.
- Eu não tenho NADA a ver com isso! Percebes? Nada! Eu não quero saber disso! Estou-me nas tintas!
Ele já devia dormir e seria rude da sua parte acordá-lo para resolverem o que o seu mau humor havia causado. Agora, vinham-lhe à memória flashes da sua indelicadeza para com alguém que a amava e respeitava.
Sempre quis a seu lado alguém que a respeitasse e a amasse pela pessoa que era, ao invés do que era hábito acontecer, e agora que tinha alguém assim não lhe dava o devido valor, ou pelo menos assim achava. Parecia-lhe aquele homem merecer todo o carinho do mundo, mas que fazia ela?
- Olha, eu agora não posso falar, está bem? Estou a conduzir e não me posso enervar, para além de que não devo chegar ao trabalho neste estado. Nós depois falamos. Adeus.
Queria correr até ele, abraçá-lo, beijá-lo, passar veementemente uma borracha naquelas horas que se haviam passado antes de sair de casa. Dizer-lhe que o amava e que o queria a seu lado para sempre, porque, na verdade, queria-o mesmo. Perder-se sofregamente nos seus braços e beijá-lo como pela primeira vez. Entregar-se inteiramente ao corpo que detinha a mente que mais estimava. Tudo porque, de facto, sem saber se estavam bem, tudo à sua volta lhe parecia insignificante e melancólico: vazio e, simultaneamente, excessivamente preenchido.
Agia como se ele lhe fosse seguro e insensível. Como se pudesse esmurrá-lo verbalmente, que nenhuma das gotas de chuva que caíam nos vidros do carro fariam latejar o laço que o prendia a ela, qual âncora lançada ao mar. As âncoras, porém, também se içam e recolhem ao navio, quando há muita força de vontade para tal.
Fui uma bruta, pensou, enquanto libertava com brusquidão a mão do telemóvel, para apoiar a cabeça. No fundo, havia feito com ele o que os outros haviam anteriormente feito com ela, num egocentrismo egoísta e exagerado. Sabia que ele merecia muito mais do que aquilo e que ela era capaz de lho dar. Urgentemente, precisava de lhe pedir desculpa, mas agora já era tarde.
Desviou o caminho que a levava até casa. Com as chaves que ele lhe havia concedido, abriu a porta da casa dele o mais silenciosamente possível, de modo a que, na manhã seguinte, quando ele acordasse e visse que ela não lhe tinha telefonado, reparasse no corpo que vestia uma camisola sua e dormia a seu lado, quiçá por se mover e o sentir ou talvez por lhe enviar uma mensagem a perguntar Então? e ouvisse de imediato o destinatário a recebê-la, ali mesmo, no seu próprio quarto, compreendendo que, afinal, era apenas uma mulher arrependida e, no fundo, verdadeiramente inofensiva.

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sábado, 13 de agosto de 2011

1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (IV)

Em seguimento de 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (III).

Ao fundo da rua que saía pela porta daquele espaço tão aberto e iluminadamente amarelo, avistou dois vultos masculinos e, esforçando-se por ver de quem se tratava, conseguiu distinguir um cabelo preto desalinhado e uma cabeça cor de trigo que o acompanhava, reluzindo às luzes do pôr do sol. Na esperança de serem os seus dois amigos dos arredores, chamou os seus nomes. Em cheio. Ambos se viraram para trás, procurando saber quem os chamava.
Filipe trazia, em contraste com o seu cabelo, uma larga camisola branca, com letras de um tom azul, agora parecendo esverdeado. Trazia a calma no rosto e a liberdade nas mãos. O mesmo já não se passava com Henrique, que, por detrás dos seus óculos de sol azuis-transparentes, dentro de uma camisola negra, parecia ansioso, com uma mão no bolso e a outra a passar frequentemente pelo cabelo louro espigado e a ajeitar as madeixas de franja para o lado, enquanto batia com o pé no chão.
- Chamaste?
- Sim. Vocês vão para casa?
- Bem... sim - disse-lhe, enquanto olhava para Filipe, com ar surpreso. Este, por sua vez, parecia compreender para além da pergunta banal, perscrutando o seu rosto com o sobrolho contraído.
- Perdeste o transporte?
Não queria, de todo, preocupá-lo, mas também não lhe podia mentir. Não queria empatá-lo nem pesar-lhe, mas precisava de admitir que necessitava da sua ajuda.
- Sim. Como é que se vai daqui para lá?
- Olha, vens connosco no autocarro e nós depois dizemos-te onde parar - Henrique continuava agitado, mas não parecia querer deixar aquele assunto pendente. - Temos é de nos apressar antes que o percamos.
- Não... Ela de autocarro gasta dinheiro e isso é mais um motivo para depois a chatearem. Ter perdido o transporte e vir de iniciativa própria com dois rapazes já são três motivos suficientemente pesados.
- Então e...? Como é que depois...?
- Estás parvo!? Achas mesmo que eu vou pôr uma gaja qualquer à frente duma amiga?
- Olha, Filipe, eu agradeço a tua ajuda, mas s...
Filipe pegou-a pela mão, puxou-a até si e cercou-lhe os ombros com o seu braço:
- Embora daí.
- Então e essa rapariga?
- Não é nada melhor do que tu - disse-lhe, num sorriso. - Pode esperar.
Naquelas tonalidades de azul e laranja que manchavam as minuciosas folhas verdes que os rodeavam, ela viu duas sombras vultuosas de homens que a acompanhariam por toda a vida e sentiu que, por mais rejeições amorosas que viesse a ter, seria sempre feliz, por ter o que ela considerava os melhores amigos do mundo.
Enquanto ela lhe atirava um aceno de despedida, ele ouviu as suas solas rangerem no chão poeirento e sinuoso que ambos pisavam. E, na queda do calor, ele sentiu que ela partia... e que dificilmente voltaria.

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Para ti e para o teu fascínio pessoal por casos entre professores e alunos. Espero que tenhas gostado.
Feliz aniversário!

1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (III)

Em seguimento de Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (II).

Arrumava os livros dentro da mala quando suspirou, tentando libertar o sufoco de emoções que o envolviam:
- Tu dás-me cabo do juízo, rapariga! - disse, com um sorriso jovial na cara, na esperança de que aquele dilema que o atormentava se fosse embora e de que ela não o interrogasse mais, chegando-lhe aquelas palavras para que ela não persistisse em martelar as suas têmporas com todo aquele sentimento que ele desejava mas não queria.
Ela não compreendia. Não conseguia compreender. Ele ora se mostrava desejoso de reconcilio, ora se mostrava receoso do que o esperava - mas não dispunha de um receio de quem está amedrontado e, no fundo, deseja que lhe peguem na mão e mostrem que o caminho é seguro, não: ele dispunha um receio de quem reprime a muito custo e muito deliberadamente as suas emoções, de quem pretende findar aquilo. No entardecer daquele sol quente de verão, ela não compreendia porquê tanta oscilação. Amor impossível? Não, não era. Nenhum amor era impossível, apenas mais ou menos difícil.
Olhou para o horizonte, o sobrolho franzido, o rosto tenso carregado de um orgulho que a ele lhe lembrava um herói a enfrentar psicologicamente um combate que tem pela frente, qual William Wallace; e, embora fosse o seu guerreirismo uma das características que mais o requintassem, naquele momento a sua expressão era visivelmente preocupada, por saber que aquela força era uma defesa contra o provável sofrimento de que ele era responsável. E, numa vontade de a abraçar e lhe pedir perdão, viu-a principiar um adeus:
- Já se faz tarde - desculpou-se, elevando o braço esquerdo ao nível do peito para ver as horas. A sua expressão seguinte, no entanto, foi a de gesticular as sobrancelhas com ar sóbrio e inclinar a cabeça, como quem reconhece um problema a resolver sem saber bem como: - E nisto já perdi o transporte para casa.
- Bem... eu até te levava, mas eu não conheço esta zona aqui...
- Pois, eu sei.
- ...A menos que tu me saibas indicar o caminho.
- Não, deixe estar - respondeu, determinada a pôr um ponto final naquela história. - Eu desenrasco-me.

Continuação em 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (IV).

1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (II)

Conteúdo para Adultos


Em seguimento de 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (I).

Baixou os olhos e esforçou-se por ignorar a forma calorosa com que ele a recebia, fingindo que não conseguia sentir os seus olhos fitarem-na encantados e o seu sorriso aguardar que ela se entregasse, pelo que tentou concentrar-se no mesmo que os outros queriam dele: ajuda académica. Ele, tendo caído em si, levantou-se num salto, apoiou o braço esquerdo por cima dos ombros dela e o direito sobre a folha que ela lhe mostrava.
Sentiu imediatamente um fogo nascer dentro de si e queimá-la por dentro, alastrando-se até às pontas dos dedos. Esta proximidade tinha quebrado o gelo em que se tinha deixado ficar, por frustração, por ciúme, por angústia. Ergueu o rosto na sua direção e olhou-o nos olhos, procurando mostrar que o seu gesto a tinha sensibilizado e que não iria resistir. Não obstante, não encontrou o seu sentimento retribuído. Perscrutando o seu rosto, não encontrou um traço de emoção ou afetividade; pelo contrário: agora portava uma expressão de profunda concentração e determinação pela conclusão da tarefa.
- Acho mesmo que vou eliminar este trabalho... - principiou ele, endireitando-se e massajando a face macia do gel usado para fazer a barba. Voltou a curvar-se, pegou na caneta e riscou a lista de alunos com aquele trabalho. - Esquece o projeto final. Não o façam, não vale a pena.
A sua não adesão foi bastante para que ela se indignasse. Via-a chateada e após a fazer amolecer-se consigo ignorava-a?
Bufou com o nariz, num sorriso irónico, e virou a cara para o lado. Fechou a boca e, no mesmo ar ligeiramente irritado, e lambeu os incisivos superiores.
- O professor é realmente um homem indeciso, não é? - disse-lho, antes de se voltar para ele e esboçar um novo sorriso irónico, com os lábios entreabertos, a sobrancelha esquerda erguida e os olhos semicerrados.
Ele, debruçado sobre a mesa e ainda fixando os papéis, bufou igualmente com o nariz, sorriu e moveu a mandíbula inferior para os lados, compreendendo. Virou a cara, encarando-a e ofereceu-lhe um sorriso céptico de lábios igualmente entreabertos, como se tivesse dificuldade em acreditar em ter ouvido aquilo dela.
Ela, por sua vez, ergueu ambas as sobrancelhas e, mantendo os olhos semicerrados, inclinou a cabeça, num gesto céptico de espanto:
- Que é?
Ele continuou a mirá-la com aquela expressão facial provocadora. É que por mim levava-te para outro sítio agora, pensou. Clicou na extremidade da caneta para a fechar, levantou-se, retirou o braço de cima dela, virou-se de costas e dirigiu-se à mesa onde tinha a sua pasta, o seu estojo e os seus livros desarrumados. Por um lado, queria muito concretizar aqueles sonhos que ela havia cultivado nele ingénua e despropositadamente; não podia, no entanto, deixar de se controlar, para o bem de todos. Mas ela não parecia importar-se com isso e parecia persistir em ficar no seu pensamento durante horas, fazendo-o querer voltar a ser um jovem sem preocupações.

Continuação em 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (III).

1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (I)

Conteúdo para Adultos


Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.

Toda aquela agitação aborrecia-a. A sala estava cheia e, quanto mais se avançava em direção à saída mais apertado o espaço era, dificultando o movimento.
Todos aqueles alunos interesseiros interpelavam o caminho até ao professor, desesperados com o trabalho que se lhes avizinhava. Mas não seria ela a verdadeira interesseira entre aqueles tijolos de amarelo e branco, ela, que tinha segundas intenções?
Não, porque, pelo menos, o interesse dela despertava emoções felizes e calorosas entre ela e ele, enquanto que os outros apenas se interessavam na utilidade académica, para maior utilidade material.
Não, não era do quão útil aquele professor lhe poderia ser que ela queria saber. Era o quão feliz poderia ela fazer aquele homem que lhe interessava. Eram aqueles lábios sedentos de prazer, aqueles dentes cheios de paixão e aquelas mãos ardentes de fúria que lhe interessavam. No fundo, era sentir o seu coração acelerado pela adrenalina e amá-lo com carinho que ela desejava. Era aquele homem cheio de inteligência, vigor e determinação que ela queria a seu lado, para enfrentar os males na vida e reconfortar-se nos bens, sempre partilhados.
E aqueles alunos todos colocavam-se entre ele e ela, gastando-lhes o tempo, frustrando-lhe a oportunidade de ficar consigo a sós e de se fazer sua mulher.
O olhar que ele lhe lançou quando chegou a sua vez foi o de quem, subitamente, sentiu o tempo parar por momentos. Contemplava-a num misto de conforto e entusiasmo, notoriamente alegre por finalmente estar com alguém por quem nutria sentimentos mais do que meramente académicos. Ela, no entanto, estava cansada de lhe sentir o amor fluir espontaneamente, de tal forma sincera de que nem ele próprio se dava conta da sua expressividade. Era, acima de tudo, um homem cheio de sentimentos e emoções, mas que tentava reprimi-las para poder agir de forma deliberada; e isso era, possivelmente, o que mais a atraía nele. Contudo, ela fartava-se dos seus jogos de toca-e-foge e de tentar perceber se ele, de facto, a queria ou não. Depois, sufocava-lhe o peito saber que de facto ele não queria nada, porque também ele queria tentar perceber se deveria arriscar tanto por uma mulher que se interessa e que o faz deliciar-se de cada vez que se exprime, mas que depois também se revela fugida, sabendo ela que ele tinha muito que refletir e que precisava, tal como ela, de alguém que lhe desse certezas. Havia muita coisa a perder para ficar com alguém como ela e não o podia fazer sem achar que ela realmente seria merecedora de tanto. E ambos andavam nesta brincadeira de rara sintonia com voltas trocadas: ela queria-o quando ele não podia e ele podia e queria-a quando ela já estava desencorajada.

Continuação em 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (II).

terça-feira, 9 de agosto de 2011

degradante

Há dias em que não nos apetece comer, falar ou ouvir seja o que for. Dias em que nos levantamos da cama sem saber bem porquê e nos dirigimos à cozinha para comer sabe-se lá o quê. Talvez por hábito, nos encaminhemos a estes sítios e façamos estas coisas. Não é plenamente deliberado e quase, até, involuntário.
Raquel estava num desses dias. Não sabia o que fazer, agora que se tinha levantado da cama por achar que já era tarde: se tomar o pequeno almoço, se tomar um duche. Ambas as ações lhe pareciam inúteis.
"Talvez deva ir comer primeiro, antes que se faça tarde", pensou. Mas tarde para quê? Estava de férias, a casa estava limpa, as tigelas do Rufus com bom aspecto e não tinha compromissos a cumprir. Os amigos haviam todos casado e pareciam-lhe felizes, entre o cansaço do trabalho e o consolo nos seus amados.
"Mas que raio é que eu vou comer a uma hora destas?", resmungou mentalmente. "Daqui a nada são horas de almoço", mas, mais profundamente, perguntava-se se toda aquela disciplina e aquela ordem fariam sentido.
Enquanto esperava o pão acabar de torrar, observava a sua mesa familiar em xadrez vermelho e amarelo. Em tempos, desejara que findassem todas aquelas ridículas e diárias discussões que não a permitiam concentrar-se no trabalho nem descansar em casa. Agora, plena, limpa e arrumada, aquela mesa, aquela cozinha, aquela casa, aquela vida... tudo lhe parecia inexo.
- Come a torrada e cala-te, mas é - ordenou ao seu próprio pensamento. - Reclamas de mais, não sabes olhar para o que tens de bom à tua volta.
No entanto, imediatamente olhou para a sua volta e viu-se repleta de um imenso vazio. Ter uma casa confortável e recheada não era bom, era agradável. Era agradável viver materialmente bem, mas isso não era, de longe, ser feliz. Os objetos não valem sozinhos, têm o valor que lhes é atribuído. E, sem o coração cheio, nem os objetos têm valor. Aliás, estes são os primeiros a deixar de o ter. Uma demonstração prática estava mesmo à sua frente, ou, mais exatamente, nas suas mãos. A manteiga da torrada não tinha sabor, porque a sua mente carecia de sal.
Dois comprimidos jaziam na sua frente, um branco e um amarelo. Frustrava-a saber que dependia de medicação, de drogas, para poder ter um comportamento minimamente razoável. Custava-lhe, por um lado, reconhecer que, sem a medicação, estava doente; por outro, custava-lhe igualmente reconhecer que só estava normal porque estava doente. Isso fazia-a sentir mal quer naturalmente, quer sob o efeito de drogas. Não suportava, ainda, a ideia de lhe ser reconhecida a revolta, os ideais e a força de vontade por doença. Não aguentava a ideia de os seus alunos ou os seus colegas alguma vez virem a pensar que, afinal, era assim tão autónoma e tão independente apenas por causa do seu estado de saúde. Por isso, enfiava aquela merda medicação esófago abaixo e concluía:
- Sou doente.

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sábado, 6 de agosto de 2011

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

os primórdios do dinheiro e da corrupção

«(...) O propósito do dinheiro era servir os membros da sociedade, para facilitar a troca de mercadorias necessárias, para levar uma vida virtuosa. O juro (...) atrapalhou este propósito, ao colocar um peso desnecessário no uso do dinheiro. Noutras palavras, o juro era contrário à razão e à justiça
Os Mestres do Dinheiro