Mostrar mensagens com a etiqueta crítica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta crítica. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 21 de maio de 2013

Saber caminhar

     Voltar atrás e ver quanto se mudou por um princípio que se manteve é percorrer uma vida em diferentes peles e saber que todas essas riquezas invulgares foram pontos de uma mesma linha reta.
     Suba-se a uma montanha e sacudam-se os nossos cabelos. Libertemo-nos então de todas essas plumas que coletamos na esperança de que nos deem asas, que chegamos sempre à conclusão de que não construímos mais do que ninhos. Pois todos esses riachos em que lavamos os pés não sabem mais livrar-se do lixo que fazemos - e sobretudo dizemos -, urge, antes de mais, a necessidade de nos despoluirmos desses pensamentos negativos, agressores, dolorosos, desmotivantes, que constituem o nosso dia-a-dia, citadinos.
     Sejamos felizes, que ninguém tem o poder de fazer isso por nós. E que saibamos domar-nos, que a subtil arte de arriscar precisa de impulso, mas, também, de travão.
     Coragem e humildade. Que não nos incomodem as feridas nos pés, das pedras que nos magoam pelo caminho que percorremos - pois não há nada nada mais nosso, quando o queremos verdadeiramente. "Basta" nunca abrirmos mão dele.

sábado, 3 de novembro de 2012

Liberdade é Ser

«Por um sistema desde longo tempo combinado foram os portugueses privados de tudo quanto pertencia ao Governo, à legislação e administração da Fazenda: todos esses importantes objetos foram reservados unicamente para certos indivíduos privilegiados e que dispunham de tudo sem responsabilidade alguma. Não havia entre nós quem ousasse pedir contas das rendas do Estado, quem pedisse as razões e os motivos de tantas leis ineptas e parciais. Nós não tínhamos verdadeiramente Pátria.»

Astro da Lusitânia, nº 1, 30 de outubro de 1820

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Nuvem de Pó

     O nevoeiro cobria-me o corpo, humedecendo os desalinhados caracóis negros que esvoaçavam levemente, tropeçando, preguiçosos, nos meus ombros envoltos de azul. Na minha frente, mergulhava o azul sobre a verde terra, deixando uma neblina lilás acima, mais leve e dissipada. Os meus olhos limitavam-se a fitar as partículas douradas que pareciam emanar de todas as pequenas coisas, flutuando até às nuvens.
     Tinha ficado horas a ocupar o lugar de espetadora, a assistir àquele musical feito dos mais intrínsecos elementos, aqueles que não partiram de nós, mas que foram nosso berço. Foram, também, palco de tantas explosões de raiva e cinzas, que não foram expelidas por nenhum vulcão. Foi, sim, o ser humano que se achou dono de quem o sustentava, talvez por assim o fazer e, por isso, transparecer uma certa dependência, de quem suplica misericórdia, em troca de uma vida devota. É a tendência do Homem em ser conceituado assim que não necessita da humildade, nem do afeto dos demais. Perde o espírito crítico e julga-se no direito de criticar tudo o que o rodeia e até mesmo o que inventa, por assim convir, sem nunca detetar a infelicidade que o poder subjaz.
     Assim tinha decidido ficar, quando a queda duma velha árvore instável resolveu tirar-me o sono e lembrar-me de que, àquela hora, poderia ter o privilégio de apreciar o que sou, o que me fez e o que tentam impotentemente destruir. Por entre o bosque penetrei, e os avisos das corujas aconselharam-me de não ser má ideia caminhar pela orla da floresta. A um quilómetro dali, avistava-se uma cabana com aspeto velho. Receando incomodar ou ser incomodada, desviei-me daquela planície e subi a um monte que ficava na sua retaguarda, bem ao lado, afinal, do bosque. Dali, via-se todo o vale, estendido a meus pés, qual maré baixa numa praia desabitada.
     Sentei-me. O vento soprava de longe, cansado, como quem, não aguentando, corre esporádica e pausadamente. As minhas mãos, na terra molhada, estavam apenas ligeiramente mais frias do que o meu rosto. Tinha os lábios gretados e feridas no peito, vestígios de uma juventude que esmorecia. Transportava comigo um cansaço, não um físico, mas um cansaço de viver, não pela quantidade, mas pela qualidade. Muito trabalho de homem tinha feito, e muita consideração de animal me tinham dado. E ali me achava, repousada e desprotegida, como uma menina inocente.
     Deixei-me cair para trás. De nada adiantava chatear-me, preocupar-me ou problematizar. No final, é tudo isto que somos: turistas. No final, sobra isto apenas: um corpo ferido e descurado que a brisa refresca.
     Compreendi, então, por que os galos me haviam acordado aquela manhã. Tudo o que eu precisava era aquele momento, de união com a terra, em comunhão com o ar: senti-la em mim e sentir-me nele, qual nuvem concreta. Era aquilo, saber viver: deixar os problemas, criados por entretenimento, e agir de acordo com o misticismo do amanhã. Eu nunca levarei os meus problemas comigo, por isso, aqui, nestas plantas suaves, deixo todo o passado, em troca do presente. Era isto, a vida.

domingo, 17 de junho de 2012

Liberdade...

Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
(Não há morte para o vento,
Não há morte).

Se, ao morrer o coração,
Morresse a luz que lhe é querida,
Sem razão seria a vida,
Sem razão.

Nada apaga a luz que vive
Num amor, num pensamento,
Porque é livre como o vento,
Porque é livre.

Carlos de Oliveira

... está dentro de nós, e não nas ações que nos são permitidas.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pedaços de Memória que o Tempo Dissipou


     Ariana sentava-se entre as folhas que jaziam a seus pés, vivas e cansadas das viagens que faziam, quais pássaros guiados pelo vento. Estas folhas, que traziam mensagens de nostalgia, faziam-na perguntar-se a si mesma se valeria realmente a pena esperar tanto por algo que nem conhece, mas que sabe existir, porque o sente.
     A madeira humedecida que suportava os seus pensamentos dava-lhe o conforto necessário para falar à maresia dançante que coadjuvava a expansão do seu cabelo pelo ar, em movimentos ondulantes e surrealmente apaixonantes. A água salgada que não conseguia tocar beijava-a silenciosamente, tranquilizando os seus medos mais ferozes e libertando as pequenas mágoas que a sua esperança ia formando, à medida que provava a sua determinação em ser feliz, num mundo feliz.
     Ao longe, ouvia os sinos e os tambores, marcando o ritmo das vidas de todos os que não os mandavam tocar. Deste cais, era-lhe possível escutar com atenção o que estes sinais cantavam, e não meramente ouvir. Se pudessem ler as lufadas por de trás daquele sorriso calmo e ligeiro, veriam, em vez de simpatia, conspiração. Isso nunca tinha acontecido antes, porque ninguém se importa com o que alguém que não toca pensa ou sente, porque serão sempre meros pensamentos abstratos, dada a impossibilidade de ação. Limitações a que Ariana assistia passivamente, não obstante o brechtianismo interior que estava na base da força e da coragem que faziam de si uma mulher excecionalmente bondosa. E perigosamente contestatária.
     Mais perto, ouviu o seu nome ser aclamado por entre as encenações de vidas consideradas normais, à sua direita. De olhos arregalados e boca ligeiramente aberta, devido à constipação que refletir lhe provocara, virou o seu rosto, para compreender o que se passara. O seu cabelo esvoaçou de surpresa para o lado contrário e exibiu a magnitude de uma mulher esbelta e simples.
     E nunca acontecerá.

Detachment by *Eukendei on deviantART

sábado, 14 de abril de 2012

poder vs. felicidade

«De que vale mostrar ao mundo que se é forte militarmente, se não se conseguem resolver eficazmente os problemas internos?»

like wildfire by =agnes-cecile on deviantART

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Tantos muros

Quando fez dez anos que derrubaram
O muro que dividia o mundo,
Um mundo antes repartido
Por interesses desiguais,
Tantos e tantos comemoraram
Pois o "muro da vergonha"
Agora não existiria mais.
E então não existe mais vergonha?
Enfim aprenderam a repartir as flores?
O sorriso já não morre nas crianças?
O sangue corre apenas pelas veias?
Já extraíram da política a peçonha? (...)
Os oceanos não se encontram mais doentes? (...)
E então?
E tantos comemoraram
A queda de um muro a mais,
Mas tantos nem se lembraram
Que dividindo este mundo
Ainda há tantos muros iguais.

Francisco Simões

domingo, 8 de abril de 2012

Assim eu pudera...

Estrelas brilhantes, caídas do céu,
Pousam nos meus olhos, fazendo-me réu.
Escrava da azul neve, nas pálpebras o Mundo
Se quebra, pestanejando, pedaços de segundo.

Pudera eu, Mãe Natureza, tua filha não ser,
Para em surreal rosa o meu toque te envolver
E, sem promiscuidade, me declarar amante
Desse teu orgulhoso cabelo de diamante!

Pudera eu, Mãe Natureza... Eu, assim, queria
Cheirar-te o rosto, maquilhado de alegria,
Morder-te o nariz, soprar-te ao pescoço,
Fazer-te sentir o meu próprio alvoroço.

Assim eu quisera, Mãe Natureza,
Amar-te a ti, pela tua singular beleza,
Envolver o teu perdão e esquecer a tua vingança
Pelos ventos dos quais sou responsável de mudança.

Assim eu pudera...

quarta-feira, 28 de março de 2012

No momento do essencial...

31+ Great Iconic Photos from History - Don't miss these pics !!!!! | funbazaar.com

...o supérfluo desaparece.

Ou melhor: o exterior, como a pele, deixam de ter significância quando aquilo de que se trata é urgente.

Será que, de facto, os preconceitos que nos dominam são verdadeiramente importantes?

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Sempre que um homem sonha / O mundo pula e avança"

(A. Geadão)

     O sonho é um acessório que o Homem traz consigo quase sempre no bolso, para o caso de sentir sede, pelo excesso de realidade consumida.
     De facto, o Homem (perdoem-me a generalização, mas a minha imaginação não consegue esboçar quantidades significativas de oposição) sente-se constantemente forçado a encaixar numa sociedade, cuja construção não foi obra sua. Por mais que se tente adaptar, há sempre sentimentos recalcados, resultantes do seu inútil (mas frequente) conformismo. Por isso, sonha. Sonha nas pausas de trabalho, sonha no trabalho pausado. Quase involuntariamente, vê as pessoas que não o observam a amá-lo, mas vê também as bofetadas que a moral o impediu de dar. Então, é despertado pelo barulho que vem de fora (e o ruído interior silencia-se).
     É, porém, nestes sonhos que encontra motivos para sorrir. Ele bem tenta (ah! Se tenta!) persuadir os outros de que as cores que a imaginação e o desejo em simultâneo pintam lhes são realidades fictícias. Os outros, contudo, ficam tão persuadidos como ele próprio, porque, afinal, ninguém sabe um dos mandamentos que a natureza humana ordena: o orgulho consegue ter mais força do que a verdade. Se alguém não sonhasse, por que diria que alcançou os seus objetivos? E por que se deprimem os que nada fazem? A frustração e o sucesso são, então, o resultado da tentativa de aplicação do quê? A expectativa e o sonho são irmãos gémeos, cujas divergências raramente se descobrem.
     Que todo o ser humano sonha, já todos, assim, sabemos. Que o sonho comanda a vida, aí já nem todos o admitimos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

3. Carta aos teus pais

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?


     «Acordei esta manhã com um sorriso na minha cara e ninguém me vai deitar abaixo hoje. Tenho sentido que nada tem corrido à minha maneira ultimamente, mas decidi aqui mesmo, agora mesmo, que as minhas perspetivas mudarão. É por isso que vou dizer adeus a todas as lágrimas que chorei, a todas as vezes em que alguém magoou o meu orgulho, a todas as sensações de que não me deixariam viver a vida, e dar um tempo para ver aquilo que é meu.
     Eu vejo cada oportunidade que tive e agradeço por tudo o que me deram.
    Eu acredito que me consigam tirar qualquer coisa, mas não poderão ter sucesso em me tirar a minha paz interior. Podem dizer o que quiserem sobre mim, mas eu vou continuar a aguentar. Eu vou continuar a cantar a minha música.
    Eu não quero habitar na dor de novo. Não vale a pena reviver o quanto eu sofri nessa altura, em relembrar demasiado bem o inferno em que eu me senti quando me estava a desviar da fé. Cada passo que eu der é a rumo de um dia melhor, porque eu me vou despedir de cada mentira e de todos os medos que guardei durante demasiado tempo, de todas as vezes em que senti que não conseguiria tentar, de todo o negativismo e conflito; porque há demasiado tempo que me tenho debatido, não conseguia continuar, mas agora percebi que me estou a sentir forte e que estou a seguir em frente.
   De todas as vezes em que tentei ser aquilo que queriam que eu fosse, nunca saiu naturalmente, por isso acabei na miséria. Estava incapaz de ver todo o bem à minha volta, ao desperdiçar tanta energia naquilo que achavam de mim -- em vez de simplesmente me lembrar de como respirar.
     Eu tomei uma decisão: nunca desistir, até ao dia em que morrer, independentemente do que for.
   Não conseguem tirar qualquer coisa de mim. Eu acredito que consigam fazer o que quiserem, dizer o que quiserem dizer. Podem dizer o que quiserem, mas eu vou continuar.
     Digam o que disserem, eu vou continuar a cantar a minha música.»
(adaptado)

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A praia não se debruça sobre mim

     No parapeito sobre o qual me debruço estende-se toda a praia da minha vida. Lentamente esta tem decorrido, consoante aquilo a que todos parecem chamar de aspirações e barreiras. Por vezes, não sei se alguma é minha ou se em mim foram despojadas. Tudo o que sei limita-se àquilo que me foi sonhado em mãos fortes, embora delicadas.
    O Sol emerge do azul do aquário que reflete o oceano que sou. Exclama o meu nome e envia-me os seus filhos, que me convidam a dançar a coreografia que todos procuram nestes cenários limitados. Não o encontram e dizem-se insatisfeitos, adormecidos no materialismo que pretende alojar-se neles. Se ao menos eles, com os seus olhos, vissem o quadro que vejo! Certamente saberiam que a felicidade mortalmente eterna não está no que finda. Não procurariam, se não neles próprios, aquilo que mais ninguém lhes pode dar. Necessariamente, não se veriam sujeitos a aceitar a alegria pelas coisas que nem os honrados clássicos tinham.
     Neste quadro que a minha mente pinta, sei que são minhas as cores que o iluminam. O melhor de tudo: eu não as comprei, nem fabriquei a partir do que encontrei. Sobre este parapeito a que chamo vida debruço-me eu e voo acima daquilo que os outros não acreditam saber pular, porque eu vejo o que a minha imaginação sonha. E sou feliz.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Neocolonialismo

«A diplomacia inteligente do período da Guerra Fria conseguiu algum espaço para a soberania dos Estados, mas e o povo?»


lost causes. by ~moondrums on deviantART

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Odor Lisboeta a Putrefação

     Estrada abaixo, António calçou as pegadas molhadas do seu preto envernizado. Cada marca deixada era como um meteorito que colidia com o betão, causando ainda mais fendas. A água era a atmosfera que protegia as fendas de serem mais do que algumas fissuras moderadamente profundas.
     O cheiro a carvão das barraquinhas ambulantes de castanhas assadas misturava-se com os odores a suor que o aglomerado de trabalhadores e turistas expelia habitualmente, como um odor intrínseco. Poderia ter sido compreendido como um aconchego ou um realce estilístico, mas, na verdade, quando baixava a cabeça e enfiava o queixo no cachecol coloridamente riscado não queria aquecer a cara com o bafo preso pela roupa, nem exibir o cabelo castanho espigado na sua nuca, mas sim esconder os olhos da paisagem de água suja nas pedras da calçada.
     Desde que lhe disse que ela precisava de ser menos precipitada e de dar mais espaço a cada coisa, a relação entre ambos nunca mais foi clara. Ela encavalitava tudo aquilo que lhe dizia respeito e desarrumava tudo de propósito. António não podia virar a esquina que lá estava ela, a barafustar com algo. Quando ele lhe perguntava por que era assim, ela ficava ciumenta e mandava-o ir ter com a ex. Esperava, certamente, que ele a mimasse e mostrasse que a ex lhe era inferior.
     Ele, porém, sentia a culpa cair-lhe em cima. A ex, pelo menos, não se chateava com tanta facilidade, nem se adornava. Era naturalmente linda. Pobre, mas verdadeiramente simples. Emanava as cores de dentro de si e não atraía a si toda a espécie de gente. Mas António deixou-se levar pelo que os outros diziam e acreditou na adoração que todos os outros faziam à que viria a ser a sua esposa e maior dor de cabeça.
   Por isso, baixava a cabeça e acarretava com as birras da amada. Lá fundo, perguntava-se se era mesmo aquilo que queria para passar o resto da sua vida.
     Ah, Lisboa, como és complicada!

Lisbon ::4 by ~MisterKey on deviantART

domingo, 15 de janeiro de 2012

29. Carta à pessoa que queres contar tudo, mas estás demasiado receoso/receosa

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.


        O coração aperta e aquece todo o corpo. Lembra-me a sensação de estar apaixonada, mas, na verdade, talvez não seja por isso. A melancolia abala-me, e eu sei que algo está errado. Ou será que aperta porque, ao pensar no que me entristece, lembro-me do que sinto falta?
     Por vezes, confundo a realidade com a ficção. Imagino acontecimentos, personagens, e esqueço-me do que, de facto, acontece. Vivo a ficção que a minha imaginação produz e sinto-a como se fosse real. Igualmente, quando certos acontecimentos ocorrem na realidade, menosprezo-os e não os consigo sentir. Isso prejudica-me na realidade.
     Costumo sentir saudades de quando isto não acontecia -- dos tempos em que existia realidade, e só realidade, e eu era apenas prejudicada por estar nela. Mas isso, na verdade, nunca aconteceu. Eu sempre vivi a ficção e a realidade, e sempre confundi um e outro cenário. A diferença entre o passado e o presente (e esse? Existe?) é que agora eu tenho noção disto -- e outrora não. Agora eu consigo aperceber-me do que se passa comigo. Antigamente, eu poderia jurar que tudo aquilo era realidade -- e, para mim, era.
        Se, então, eu sei o que me está a acontecer e isso me prejudica, por que não o mudo? Eu já provei no passado ser capaz de alterar a ordem das coisas e, inclusivamente, mudar o meu comportamento, quando achava que o devia fazer. A grande oposição é: eu não sei se o quero fazer. Eu não quero trocar as cores de um mundo por um mundo que não me faz feliz.
        Eu não quero continuar no compromisso de atividades que não me dizem nada e que me fazem deixar para trás o que me faz deslizar de satisfação. Quero continuar a acordar todos os dias com a motivação de ser um novo dia, com oportunidades para fazer novas coisas, sem lamentar o frio que está lá fora ou as horas de sono que não dormi. Não quero continuar a acordar todos os dias e pensar que adorava não ter de sair da cama. Estou farta deste ritmo que o mundo me impõe, mas que em nada é meu. Quero partilhar com os outros as coisas que sei e, com os outros, aprender novas coisas. Quero continuar a escrever com a paixão de um amor gigante. Quero deixar de fazer batuques discretos com os meus dedos e tocar, efetivamente, um piano. Quero sujar as telas e as folhas com tintas e carvão. Quero viver com a pessoa que mais amo numa casa discreta no meio da floresta. Ultrapassar esta insetofobia que, irracionalmente, me bloqueia e voltar às raízes de toda a humanidade, à simplicidade tão pura e sincera que originou toda esta comunidade corrupta. Porque sim, eu encontrei alguém que me ama assim, com quem quero partilhar toda a minha vida. Alguém que não só conhece toda a minha estranheza, como também a acha bela. Tenho excelentes amigos, acredita, que também gostam de mim, assim como sou. Sempre duvidaste de haver por aí alguém que fosse, mas essa dúvida não era pelas outras pessoas, mas sim apenas tua. Tu nunca aceitaste os mais pequenos indícios da pessoa que eu poderia ser e nunca aceitarás que eu seja como sou. Nunca serás capaz de amar quem eu sou e, portanto, não compreendes como é possível que mais alguém o seja. Tens os olhos cheios de preconceitos que te impedem de ver para além do físico. Eliminas, logo à partida, qualquer hipótese de ser positivamente surpreendido.
       Gostava de ter o conforto monetário que me permitisse quebrar todas estas regras que me prendem a um mundo cheio de stress. Mas então surgem os meus conhecimentos de economia a relembrar-me de que o dinheiro não aparece, nem desaparece, apenas muda de local -- e que, para eu conseguir ter muito dinheiro e realizar estes meus sonhos, é preciso que, à minha conta, haja muitas pessoas que ficam longe de saber o que é sequer sonhar. E eu sei que, mesmo que eu não contribua para tal, há-de haver sempre alguém que o faça. Mas eu não quero ser essa pessoa. Não quero ser também culpada pelas injustiças que me revoltam. Não quero matar a beleza que encontrei dentro de mim.
       Mas eu sei que não sou a única a sentir estas coisas e a sonhar desta forma. Pelo contrário, tal como eu, há-de haver muita mais gente que, aparentemente, não tem nada de errado, mas que, no fundo, gostava de continuar a ser criança. Por que têm de ser as crianças sempre a única referência de quem corre, ri, brinca, festeja, é sincera e espontânea, canta e dança? Pois eu não quero crescer, não nesse aspeto, e deixar de ser feliz. E eu sei, eu tenho a certeza, que a maioria esmagadora das pessoas sente esta mesma insatisfação dentro de si. Por que, então, não nos unimos todos e nos revoltamos contra este mundo que corrompe as almas?

Soul Meets Body by ~CARUTOS on deviantART

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Filha do Rei II

Em continuação d'A filha do Rei I.

    Não. Constança não era assim. Constança achava que a janela através da qual tinha vista para a origem da vida era a moldura mais bela que alguém poderia ostentar e, por isso, orgulhava-se em tê-la no seu quarto, a um metro da sua cama. Era-lhe sempre agradável não seguir os conselhos de Haleema, a aia de quem era mais próxima, e dormir de janela aberta. Quando a vinham chamar para a acordarem, já os galos tinham ajudado o vento a acordar Constança. Aquela brisa sempre fresca no seu rosto fazia-a inspirar fundo assim que abria os olhos e encarava um Sol tímido por detrás do habitual nevoeiro. Imediatamente, libertava um pequeno sorriso e esticava os braços, de punhos fechados, salientando o seu peito, como que numa exibição de recompensa à Natureza pelo bem estar provocado. De seguida, levantava o tronco e ficava, naquela tranquilidade matinal, a observar o mais real quadro que alguma vez tinha visto, deixando que a pureza dos campos a fortalecessem. Por vezes, ficava a ver os tecidos da sua cama de dossel voarem em coreografias místicas, em tons de azul, cinzento e branco.
     Acordar tão cedo quanto o Sol é que não era duma princesa, por isso sempre esticava os cobertores da cama, vestia uma capa quente, puxava o cabelo para o lado, saía do quarto, fechava cuidadosamente a porta de madeira e descia, sorrateiramente, a escadaria de pedra, para que não se apercebessem de estar a tomar a iniciativa de fazer o que uma pessoa ordinária faria, não tendo o seu estatuto. Constança achava que a única coisa extraordinária ali era a porcaria do estatuto, que lhe fora conferido sem ela ter responsabilidade de tal. Por isso, agia consoante o que queria e desejava, tanto às claras, como às escondidas. Ao chegar a cada piso de baixo tinha de se esconder e potencializar a sua audição e a sua visão, a fim de encontrar algum guarda sonolento que rondasse o castelo, mandado pela mãe, à procura da rebeldia da filha. Dulce chegara a ordenar a um guarda que ficasse de plantão no exterior da porta do quarto da filha, mas este, ao segurar Constança, levara um murro na cara, que lhe partira dois dentes da frente, e uma forte joelhada na zona sensível. D.ª Dulce Berenguer de Barcelona, como assim era chamada a mulher que lhe tinha dado a vida, mas não o leite, chegou a discutir consigo, mas sentiu-se mais intimidada do que a filha, que lhe apontou o indicador e jurou não deixar que a inibissem a esse ponto.
     Ao chegar ao rés-do-chão, caminhava apressadamente para a porta da cozinha, no fundo da divisão. As cozinheiras sentiam-se embaraçadas, largavam prontamente tudo o que tinham nas mãos, fechavam-nas no colo e baixavam as cabeças. Inicialmente, Constança tentava deixá-las mais à vontade, mas ao ver que eram as próprias criadas que persistiam em se autodiscriminar, não lhes dava importância e seguia o seu caminho, pela porta das traseiras. Aí, sentava-se no degrau que havia antes de pisar a terra relvada e contemplava o trabalho dos humildes senhores que só não estavam no seu lugar pelo azar de terem nascido das mulheres erradas, que lhes tinham dado a vida e o leite. Um moço, de calças arregaçadas e roupas encardidas pelo tempo, logo aparecia, com um balde com água. Era Martim, o filho do padeiro, e sempre lhe tinham encarregue o transporte dos alimentos. Tinham-se conhecido numa das vezes em que Constança agredira Afonso, por este ridicularizar os agricultores. Martim estava a par dos rumores e do pânico que a filha do Rei causava e ficava curioso de a ver. Constança tinha sido puxada pelo braço até à cozinha por uma das aias, que a repreendeu por agir como uma vândala. Assim que a aia saiu, Constança deitou-lhe a língua de fora e cruzou os braços, só os tendo descruzado para ir ter com Martim, escondido fora da porta, que a chamou e lhe disse que ela era um máximo. Desde então, tornaram-se grandes cúmplices e criaram um laço muito forte e um dos mais raros da Corte, a que Constança chamava de verdadeira amizade. E ali estava ele, sempre disposto a trazer-lhe a água que Constança agradeceria com um sorriso e um piscar do olho direito e levaria para o seu quarto, onde se lavaria e vestiria um dos seus vestidos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

5. Carta aos teus sonhos

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.

Following her dream by *duchesse-2-Guermante on deviantART

       Acordar todos os dias pode ser uma tarefa tanto ou quanto difícil.
     Eu pensava assim, nas épocas de apatia. Não é que fosse difícil levantar-me da cama e seguir uma rotina denominada enquanto normal, típica de todos os que se acham -- e que muitos assim os reconhecem -- grandes (assim os definem os padrões bege, preto e cinzento, bem como os rostos infelizes e frustrados, que são símbolo de riqueza, conforto, inteligência e maturidade -- o meu avô costuma chamar-lhes homens de linha). Tal como qualquer pessoa normal, eu levantava-me da cama e fazia exatamente as mesmas coisas que os ídolos e os heróis da minha sociedade faziam.
     A diferença era que eu não me orgulhava de seguir os ídolos da minha sociedade. Sociedade que nunca foi minha, verdade seja dita. Os meus olhos pertenciam-me, não à sociedade. Igualmente, pertenciam-me os pensamentos, não à sociedade. Porque eu não deixava que a sociedade fizesse deles seus, como fez a quase todos os que, tal como eu, agiam em razoável conformidade. Os gostos chegavam a todos nós, mas nem todos nós os consumíamos. Era por isso que vocês procuravam. Procuravam quem não se tinha conformado com os desejos da sociedade e se sentia vazio por não encontrar nada que o preenchesse.
     E eu prometi-vos nunca vos deixar nem vos vender. Fiz serões, gritei, chorei e jurei a pés juntos o amor que por vós nutria. E nutro.
     A dor não é de não vos ter porque não vos conheço. Eu conheço-vos, melhor do que ninguém. Eu tive-vos, mas vocês fugiram. Não fracassaram, mas despediram-se e abandonaram-me, deixando apenas uma caixa, não vazia, mas com uma cama bem requintada, com as mais confortáveis almofadas. Essa cama foi feita à vossa medida e agora aloja-se, vazia, em mim e vai suspirando pelos donos que a deixaram assim, por fazer, sem nada dizer antes da partida, deixando o mistério, a dúvida e a incerteza nos lençóis.
     Eu vou vos encontrar. Eu tenho de vos encontrar.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

plumas brancas

     O profundo descanso escuro em que me encontrava foi substituído por um vagão de luz branca azulada que se espalhava sobre o leito revolto em que dormia. Preguiçosamente, vi as minhas pestanas desvanecerem do meu campo de visão, permitindo-me encarar o despertar de um novo dia.
    À minha frente, vi-te, caído, calmo e vulnerável. Os carnudos lábios onde eu me costumava deleitar estavam dormentes, vagamente separados, sem vida. A tua mão esquerda estava meio fechada, queda, contra o lençol branco em que te confortavas. A direita repousava mesmo ao lado da minha anca, como projeto inacabado de meu alcance.
     Fiz a distância entre nós encurtar, a fim de me certificar que não sonhava, para te ter mais real, mais verdadeiro -- mais meu. Nunca o foste, porque a posse é uma ilusão. No final -- porque há sempre um final --, tudo se perde, duma forma ou doutra. Não há nenhum normativo legal que possa substituir as considerações morais -- e nenhuma ética capaz de sustentar a verdade de uma posse. Imediatamente, ouvi, ao longe, João Pedro Pais com o seu clássico ninguém é de ninguém, mesmo quando se ama alguém. Mas há algo que detemos garantidamente e que nem sempre perdemos: o amor. Os sentimentos que nutrimos são sempre nossos, uma vez que nós somos de nós mesmos, e o amor que temos é sempre nossa posse. A pessoa que amamos já não. E eu sempre tive essa noção contigo. Sempre soube que a cor de caramelo torrado que me seduzia pacificamente não era minha. Nunca foste meu, mas eu sempre te amei. Assim como eu também nunca fui tua, mas sempre me senti por ti amada. Isso sempre foi do consenso de ambos, o que permitiu que nunca houvesse crises de ciúmes entre nós, nem discussões acerca da obrigatoriedade ou legalidade da nossa relação, durante todos aqueles anos que tinham passado por nós, a correr. O amor é, sempre foi e sempre será livre. Só assim, livre e espontâneo, nos pode enraizar verdadeiramente a alguém e disponibilizar-nos a capacidade de voar, mesmo com a força gravítica que a física nos impõe.
     Prendi o cabelo com o pauzinho chinês que me havias oferecido, há anos atrás. Silenciosamente, limitei-me a observar as graduações de castanho que a eumelanina da tua pele formava, com a luz que te embatia nas costas. Suavemente, senti o calor da tua respiração arrepiar os pêlos meu braço, subir, qual serpente, por mim acima, até à minha nuca. Com a mesma subtileza com que existias, desejei sentir a textura da beleza que me encantava. Percorri, com a ponta dos dedos da mão esquerda, a linha que vinha desde a tua cintura destapada. Passei pelo teu ombro e senti o teu pescoço quente, mas tu continuavas, que nem um anjo, profundamente adormecido. Ao tocar o teu rosto, senti a aspereza dos pequenos pêlos da tua barba e deixei-me fazer cócegas nos dedos. Tal como uma escovinha com pequenas agulhas, aquelas farpas pontiagudas massajavam-me e tranquilizavam-me.
     No transe em que estava, não senti que acordavas. Vi os teus grandes olhos fitarem-me, com a surpresa de uma criança. Sorri, embaraçada.
     - Bom dia, amor - proferi timidamente, como se essas três pequenas palavrinhas pudessem substituir uma justificação para estar a contemplar-te, qual pecado que ninguém comete.
     De imediato, vi um terno e sincero sorriso esboçar-se nos teus lábios e não pude deixar de reparar que os teus dentes estavam tão brilhantes como se nunca tivessem sido usados. Acordaste os teus braços dormentes e as tuas mãos cercaram-me, puxando-me para ti. Ao encaixar a minha cabeça no teu pescoço, passei o meu braço por cima de ti e senti os teus braços a aconchegarem-me as costas, enquanto a tua mão esquerda me acariciava a cabeça e fazias os teus dedos entrelaçarem-se no meu negro e farto cabelo.
     Desprendi a minha cabeça de ti, enquanto respirava profundamente, como quem vem à superfície, após um calmo mergulho. Não consegui impedir-me de sorrir enquanto descobria o meu rosto, até ora imerso em ti. Senti um calor enorme invadir-me as bochechas e desviei o olhar, para baixo. O teu braço direito deixou de segurar as minhas costas e a tua mão encostou na minha bochecha esquerda. Olhei para ti. Miravas-me fixamente, seriamente. Desfiz o sorriso embaraçoso que esboçava. A tua voz grave entoou nos meus ouvidos, aquecendo-me ainda mais:
     - És linda.
     Encostei o meu nariz ao teu e fechei os olhos. Ao tocar os teus lábios, envolveste-me com força e puseste-me em cima de ti. Senti tudo como se fosse novo, como se nunca te tivesse beijado antes. E, naquele calor único, soube que aquilo que nos unia era mais forte do que o poder de qualquer assinatura ou aliança.