sexta-feira, 30 de março de 2012

"Ma vie s'anime dans ton sourire"


    O relvado de lã que cobre as minhas costas conforta-me, dissipando as únicas dores que costumo ter, desde que abro a janela ao Sol. Outrora, tinha medo que a ventania entrasse para a casa e esfriasse o quarto. Quarto, diga-se de passagem, já frio. Não receava, portanto, perder o calor, mas sim intensificar o clima que já me agonizava comodamente. Cansei-me, assim, de tentar isolar o ar e correr apenas as persianas e os cortinados, tal como deixei de usar lâmpadas. A luz do Sol, para ser calor, precisa de se infiltrar verdadeiramente -- e não ser simulada ou barrada parcialmente. Não há meio termo para tudo o que é natural e, portanto, espontâneo -- ou, em última análise, verdadeiro.
     Na frente dos meus olhos, vejo a luz correr para me alcançar, por entre a renda branca que baila por entre as tonalidades laranja, verde e rosa, quais holofotes que lembram auroras. Estico-lhe a mão e sinto a simplicidade de ser genuíno arrepiar todos os cabelos do meu corpo, provocando em mim uma sensação de prazer, frescura e calma, à medida que a paz interior se entrelaça e avança pela ponta das minhas unhas, até colocar a sua aliança em mim. A minha cabeça pende da borda da cama, sinto o calor massajar-me a nuca e imagino que os caracóis negros desalinhados que decoram a minha cabeça devem estar agora ruivos, de banhos de Sol. Tu sempre gostaste da forma como o meu cabelo se assemelha à juba de um leão. Não é, contudo, a selvajaria que te prende a mim. A aparência tropical limita-se a incendiar estes corpos que não se desgrudam.
     A minha mente maga transforma, subtilmente, as ondas dançarinas nos meus olhos em memórias de uma realidade com a qual nunca deixei de sonhar. Pessoa sussurrava que a realidade é apenas o ponto de partida para o sonho, mas foi com a maior racionalidade que o sonho nos fez partir para a realidade.
     O meu peito, todo coberto pela tua existência, sente um calor não suado, um calor intenso e amado. No meu ombro, tenho uma cabeça que arfa sobre o meu pescoço e me faz saber que nenhum mal me pode acontecer. Nos teus braços, repousa toda a minha fragilidade, cujo saber se dissipará com o tempo, até à deterioração fatal que nos espera a todos. Um dia, a doce textura da tua pele não será mais sentida com o toque dos meus dedos. Aquele calor que, no entanto, emana de nós, por mais conscientes que sejamos, é a vitória de uma vida. Por mim, sei que poderia deixar de existir daquele momento em diante, porque seria sempre recordada como alguém que alcançou a felicidade maior que pode existir num ser humano...
     Até lá, tenho a proximidade de dois corações que batem em uníssono, tenho as cores mais bem pinceladas na minha mente, e tenho as tuas costas musculadas sobre o meu tórax, debaixo das minhas mãos... E, com elas, acaricio quem está do outro lado e sente a mesma ânsia de viver que eu. Essa, sim, é a melhor recompensa que se pode dar a alguém por crer, por querer, por esperar... A textura ondulada e fria dessa tua pele de caramelo, cujo odor é mais suave do que a maciez do algodão como nuvem de plumas.
     Nunca deixes que nada quebre aquilo que construímos. É tudo o que te peço em troca.

quarta-feira, 28 de março de 2012

No momento do essencial...

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...o supérfluo desaparece.

Ou melhor: o exterior, como a pele, deixam de ter significância quando aquilo de que se trata é urgente.

Será que, de facto, os preconceitos que nos dominam são verdadeiramente importantes?

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Sempre que um homem sonha / O mundo pula e avança"

(A. Geadão)

     O sonho é um acessório que o Homem traz consigo quase sempre no bolso, para o caso de sentir sede, pelo excesso de realidade consumida.
     De facto, o Homem (perdoem-me a generalização, mas a minha imaginação não consegue esboçar quantidades significativas de oposição) sente-se constantemente forçado a encaixar numa sociedade, cuja construção não foi obra sua. Por mais que se tente adaptar, há sempre sentimentos recalcados, resultantes do seu inútil (mas frequente) conformismo. Por isso, sonha. Sonha nas pausas de trabalho, sonha no trabalho pausado. Quase involuntariamente, vê as pessoas que não o observam a amá-lo, mas vê também as bofetadas que a moral o impediu de dar. Então, é despertado pelo barulho que vem de fora (e o ruído interior silencia-se).
     É, porém, nestes sonhos que encontra motivos para sorrir. Ele bem tenta (ah! Se tenta!) persuadir os outros de que as cores que a imaginação e o desejo em simultâneo pintam lhes são realidades fictícias. Os outros, contudo, ficam tão persuadidos como ele próprio, porque, afinal, ninguém sabe um dos mandamentos que a natureza humana ordena: o orgulho consegue ter mais força do que a verdade. Se alguém não sonhasse, por que diria que alcançou os seus objetivos? E por que se deprimem os que nada fazem? A frustração e o sucesso são, então, o resultado da tentativa de aplicação do quê? A expectativa e o sonho são irmãos gémeos, cujas divergências raramente se descobrem.
     Que todo o ser humano sonha, já todos, assim, sabemos. Que o sonho comanda a vida, aí já nem todos o admitimos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

3. Carta aos teus pais

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?


     «Acordei esta manhã com um sorriso na minha cara e ninguém me vai deitar abaixo hoje. Tenho sentido que nada tem corrido à minha maneira ultimamente, mas decidi aqui mesmo, agora mesmo, que as minhas perspetivas mudarão. É por isso que vou dizer adeus a todas as lágrimas que chorei, a todas as vezes em que alguém magoou o meu orgulho, a todas as sensações de que não me deixariam viver a vida, e dar um tempo para ver aquilo que é meu.
     Eu vejo cada oportunidade que tive e agradeço por tudo o que me deram.
    Eu acredito que me consigam tirar qualquer coisa, mas não poderão ter sucesso em me tirar a minha paz interior. Podem dizer o que quiserem sobre mim, mas eu vou continuar a aguentar. Eu vou continuar a cantar a minha música.
    Eu não quero habitar na dor de novo. Não vale a pena reviver o quanto eu sofri nessa altura, em relembrar demasiado bem o inferno em que eu me senti quando me estava a desviar da fé. Cada passo que eu der é a rumo de um dia melhor, porque eu me vou despedir de cada mentira e de todos os medos que guardei durante demasiado tempo, de todas as vezes em que senti que não conseguiria tentar, de todo o negativismo e conflito; porque há demasiado tempo que me tenho debatido, não conseguia continuar, mas agora percebi que me estou a sentir forte e que estou a seguir em frente.
   De todas as vezes em que tentei ser aquilo que queriam que eu fosse, nunca saiu naturalmente, por isso acabei na miséria. Estava incapaz de ver todo o bem à minha volta, ao desperdiçar tanta energia naquilo que achavam de mim -- em vez de simplesmente me lembrar de como respirar.
     Eu tomei uma decisão: nunca desistir, até ao dia em que morrer, independentemente do que for.
   Não conseguem tirar qualquer coisa de mim. Eu acredito que consigam fazer o que quiserem, dizer o que quiserem dizer. Podem dizer o que quiserem, mas eu vou continuar.
     Digam o que disserem, eu vou continuar a cantar a minha música.»
(adaptado)

domingo, 4 de março de 2012

Homme Fatal

Conteúdo para Adultos


     Sentada de lado no cadeirão escarlate, via as minhas pernas despidas, apoiadas no braço direito da poltrona, mudarem de cor, conforme o crepitar das labaredas. O amarelo avançava progressivamente em relação à minha direita, debruçando-se por cima de mim para me abraçar a cintura. Não o conseguindo, um vestígio de sombra ficava desde o meu nariz até à biqueira das minhas sabrinas cor de cinza. Na transição entre o sonho e o sucesso, estava aberto no colo da minha saia cinzenta pregada um espesso volume, onde as rivalidades entre lobisomens e vampiros me eram explicadas. O confortante calor, que, naquela noite de fevereiro, era expelido da lareira no meu lado esquerdo, permitia que eu tivesse apenas a camisa branca vestida, donde pendia a minha gravata vermelha e amarela, e as mangas arregaçadas.
     Àquela hora, não costumavam estar muitas pessoas na Sala Comum. Atrás de mim, deveriam estar umas quatro ou cinco raparigas histéricas e um pouco invejosas. Pelo menos assim me pareciam, quando costumavam ver o garanhão desprezá-las para me dar a atenção que ninguém supostamente conseguiria despertar nele. Eu ouvia-as comentar as fofocas mais pindéricas que a imprensa poderia vender e as bugigangas mais dispensáveis que poderiam ser comercializadas. Mais adiante, estavam dois rapazes e uma rapariga de volta dos papéis, quiçá a escrever um relatório para a manhã seguinte ou apenas a fazerem o tempo livre render. Digamos, um deles não deveria certamente estar ali pelo segundo motivo, talvez até nem tanto pelo primeiro, mas mais para não se sentir só. Nunca tinha percebido como uma pessoa tão dependente dos outros pudesse ser aceite como uma de nós, embora compreendesse que talvez apenas eu visse algo de errado naquele rapaz. Mais imparcialmente, era a minha tendenciosidade contra a ingenuidade deles. Como tal, e por questões de respeito, eu limitava-me a não lhe dar muita atenção.
     Sentia-me preguiçosa em todo aquele meio agradável e estiquei-me para trás. Deixei a cabeça e os braços penderem no sofá e fiquei a ver o teto com carpete escarlate e o chão com candeeiros. O meu corpo foi perdendo força e os meus músculos relaxaram, em verdadeira paz física. Fechei os olhos e lembrei-me do cheiro do negro cabelo dele. Ah, como gostava que me envolvesse com aqueles seus fortes braços e preenchesse com os seus lábios rosados e carnudos o espaço entre os meus! Como gostava desse seu jeitinho mal intencionado e de como colocava o seu braço à volta dos meus ombros e me aquecia as bochechas com beijinhos, apertando-me com força! E como gostava de não precisar que me admitisse nada...
     -- Olá, estudiosa -- uma voz masculina e grave me disse em tom alegre e malandro. Abri os olhos e paralisei por momentos, como que ainda a processar a informação. Levantei a cabeça e, para minha surpresa, ali estava ele, debruçado sobre as costas do cadeirão, com um ligeiro sorriso nos lábios e os cabelos que nem cortinados ondulados, caídos.
     -- Estás aí há muito tempo?
     Abriu o sorriso por completo e, no mesmo ar sedutor, levantou-se do sofá e contornou-o. Parou encostado às minhas pernas, quase a meu lado, e vi o seu corpo abaixar-se e avançar em direção a mim, enquanto senti o sangue correr mais depressa e o peito inchar por causa aquele ar galã que ele tinha. Não me lembro de pensar mais nada, nem de reagir, quando pousou uma mão de cada lado do meu pescoço e avançou a sua cara em direção à minha:
     -- Há suficiente para perceber que essa camisa te fica muito bem.