terça-feira, 27 de abril de 2010

descoberta de uma ferramenta social

É curioso ver que a minha alma sempre gostou da clareza. Nunca quis dar um passo em falso, sempre mostrou alguma segurança, nem que fosse só na determinação e na vontade.
Recordando a primeira vez que o meu espírito se revoltou contra o silêncio, há gargantas que me asseguram de dizer , enquanto primeira palavra liberta, ao fim de nove meses de existência. Ocasionalmente, soltava um mãe, principalmente nos momentos em que a mulher que me costumava trocar as fraldas aparecia aos meus ingénuos olhos. Numa tentativa de tornar na minha cabeça os conceitos claros, essa senhora emendava:
- Avó!
Eu repetia , silenciando-me de seguida; mas rapidamente voltava a contrariá-la, chamando-a sucessivamente:
- Mãe, mãe, dá!
Nunca esta senhora desistiu de ensinar-me a falar correctamente. Nunca me deixou pedir teté em vez de ovo, nem chicha em vez de carne: o ovo é o ovo, não o teté!
Todos me garantem nunca ter ousado inventar palavras inexperientemente. Sempre que dizia algo, dizia-o com tal determinação que fazia tudo parecer correcto. Assim, por uma questão de associação de animal com cauda à palavra gato, chamava gato a qualquer cão que infiltrasse o meu campo de visão. Recusava chamar miau a um animal que miasse, porque todos os animais que miam têm cauda e todos os animais com cauda são gatos, chamassem-lhes o que quisessem.

sábado, 24 de abril de 2010

protagonista perdida

Uma carta de Adriana Pereira. Desabafo de um coração destroçado pela saudade de uma grande amiga.
Olá, twin.
Já li os teus textos. És uma escritora notável, deixa que te diga. Adorei. Aquele teu sonho, o do número 16, é muito estranho. Quanto ao resto, em relação àquele rapaz... Não me lembro o nome... Miguel,
maybe? hmm... Em relação a isso, não há muito a dizer, penso. Ele continua sem avançar? Bem, é um rapaz estranho... Indeciso, quanto muito.
Eu hoje não estou nada inspirada. Só para que saibas. Dia mau. Enfim!
Tenho-me sentido todos os dias como que deslocada, como se estivesse no meio de um palco que não é o meu... Como se tivesse entrado na peça errada, como se fosse uma personagem errada. O pior é que não encontro a saída... Obrigam-me a interagir com as outras personagens. Cada vez sinto mais falta das personagens do palco a que pertenço, da história que sei ser a minha. Só há uma personagem com quem me sinto em casa, mas não me deixam interagir com ela... Só temos meia dúzia de diálogos, são tão poucos!... Sinto a tua falta, quero voltar ao meu teatro, ao meu palco, à minha história. Quero voltar a sentir-me inteira, uma unidade, como dantes. Como quando as salas de estudo eram para os outros e eu podia falar contigo até que a campainha nos disparasse nos ouvidos e nos lembrasse que o dia tem um fim. E então ambas sabíamos que era o fim da conversa e sabíamos que no próximo intervalo da vida, na próxima pausa da realidade, podíamos refurgiar-nos no conforto da palavra amiga. Quero isso de volta. Quero poder chamar-te
twin a olhar-te nos olhos, quero poder ouvir o que tens para me dizer e poder depois agradecer-te com um abraço.
Hoje, foi um dia mau. O Rodrigo estava mal. Eu fiquei mal. Sinto-me ligada a ele, como se o sorriso dele me enchesse de luz, me tocasse como uma agradável brisa e lavasse da minha alma todas as minha preocupações; e uma lágrima a escorrer dos seus olhos preenchesse o meu céu com nuvens do mais negro tom de cinza e me queimasse por dentro como um fogo insuportável de Verão. Sei que não devia sentir estas coisas, mas ainda não consegui erguer uma barreira que conseguisse parar a torrente de emoções que ameaça deitar por terra a pouca estabilidade emocional que por vezes consigo erguer no meu âmago. Ele tinha um dente partido, a canela ensanguentada e também no pescoço sobressaía uma marca vermelha. Não tive a coragem de lhe perguntar o porquê de todas essas mazelas. Tenho demasiado medo de ir longe de mais. Tenho demasiado medo que ele fique chateado ao ponto de nunca mais ter a pequena parte da amizade que ele me concedeu. Estimo essa amizade. Tenho cuidado. Há uma linha para lá da qual não me atrevo a ir.
Não sei o que ele tinha, sei que o que quer que fosse teve em mim o mesmo efeito de uns quantos milhões de mãos e braços a puxar-me para baixo, para a imensidão negra que sinto por baixo de mim.

Tinha de falar com alguém. Desculpa não ter conseguido ser de grande utilidade para o teu problema.
Obrigada por seres minha gémea. Obrigada por tudo. Adoro-te muito, tenho saudades.
Beijo grande.

sábado, 17 de abril de 2010

Muse: MK Ultra

The wavelength gently grows, coercive notions re-evolve, a universe is trapped inside a tear. It resonates the core, creates unnatural laws, replaces love and happiness with fear. How much deception can you take? How many lies will you create? How much longer until you break? Your mind is about to fall and they are breaking through. (...) We are losing control. (...) Now we’re falling. (...) Invisible to all, the mind becomes a wall. All of history deleted with one stroke. (...)
 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Green Day: Going To Pasalacqua

"Here we go again. Infatuation touches me just when I thought that it would end. Oh but then again it seems much more than that, but I'm not sure exactly what you're thinking. I toss and turn all night, thinking of your ways of afection, but to find that it's not different at all. I throw away my past mistakes and contemplate my future: that's when I say "what the hey?!" Would I last forever? You and I together, hand and hand, we run away (far away). I'm in for nasty weather, but I'll take whatever you can give that comes my way. (...)"

 

quarta-feira, 14 de abril de 2010

José Régio: "cântico negro"

Vem por aqui — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: vem por aqui!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: vem por aqui!?
 
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: vem por aqui!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
Régio, José; Cântico Negro

percurso olfactivo

Conteúdo para Adultos


Conheço cada traço em ti, cada passo, cada gesto; mas ignoro o teu aroma. Inspiras-me profundamente o ódio e consegues repugnar-me a ponto de não querer chegar perto de ti: conhecer-te com o nariz assusta-me inteiramente, pois não quero quebrar a sólida ilusão feliz em que me encontro.O profundo cheiro de terra molhada, de folhas que escorrem gostas matinais, agrada-me. Ao sair de casa, essa é a primeira sensação que me invade felizmente. O cheiro a mofo dos carros, a fechado, asfixia-me então: é algo de que nunca gostei, pois dá-me sempre vómitos, ao fim de algum tempo. Sinto então o cheiro do cimento, do pó, que me repugna também, mas a procura pela paz interior é em mim incessável, o que me irrequieta.
Quando saio de um corredor sombrio, da morte, intolerável no que toca ao medo, que não se deixa intimidar pela mais corajosa alma, sinto o ar violar as minhas fossas nasais de forma delicada, como um sadomasoquismo. O cheiro do intocado, do ar puro da manhã (aquele cheiro a gelo!) acompanha-me durante algum tempo.
Chamam-me irrequieta quando me vêem, mas isso é porque a única coisa que é constante a partir do momento em que abandono as nuvens, passando a fazer do céu um conjunto de andares de betão, areia e tijolos, é a minha saudade do cheiro da manhã! A partir daí, tudo me sufoca numa tentativa esmagadora de me fazer sangrar, mas nenhum olfacto é agora igual: giz, suor, urina, excrementos, caspa, pó, mofo... não há um aroma que se repita: a única coisa que, de facto, se repete é o incómodo que a tua presença me traz, transformando as mais perfumadas flores em todos os diferentes tipos de odores de escumalha, numa ordem aleatória.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

encontro com apolo

Enquanto escolhia a melhor maneira de alimentar o carrinho das compras, cruzei-me com a maior divindade bela. Uma criança loura, um bebé, estava sentada num carrinho alheio.
Durante toda aquela manhã, os meus olhos esboçaram tristeza, apatia e revolta. Uma raiva profunda preenchia-me o rosto com antipatias, impedindo-me de sorrir. Ouvi um ruído que me fez sair da distracção e virar para trás. Uma criança despreocupada que olhava o vazio largou a sua distracção e olhou-me. De imediato, os seus olhos iluminaram a minha alma e soltei um sorriso inconscientemente. A criança retribuiu-o, deixando-me pacificamente feliz.
Os seus raios de sol decoravam uma cabeça pequena, marcada por umas bochechas que se atreviam a não esconder-se debaixo de uns olhos castanhos, separados pela profundeza redonda de um pequeno nariz. E a criança libertava felizmente risos ingénuos.
Várias vezes perdi aquela imensidão de pureza de vista, mas rapidamente, quando menos esperava, os nossos olhos cruzavam-se novamente. Um vício e um desejo imenso de abraçar aquele Messias esbofetearam-me com cobardia. Que beleza! Que vontade!
Perco eternamente aquela bondade dos meus olhos.
Pergunto-me como será aquela criança, daqui a uns anos. Tanta mágoa, tanto pecado invadirá a maior virgindade! Poderá, um dia, passar-me ao lado, sem que possa reconhecê-la? Será cruelmente diabólica a esse ponto? Pobre memória!


Inocência!
Apolo!
Cadáver!
Ilusão!
Espectro!
Salvem-me do tempo!

quinta-feira, 8 de abril de 2010

abusar de mim, possuir-te inteiramente

Conteúdo para Adultos


Tens uma maneira confusa de agir. Nunca dás a entender a tua verdadeira intenção, na tua maior pureza oculta. O teu olhar profundo esconde uma imensidão de vontades sem intenção, que em mim se infiltram de forma tão simultânea que nem eu chego a perceber se eu própria te quero ou não.
Vais e vens: crias autonomamente esperanças que tu próprio destróis no momento. É então que deixas a tua indecisão e a tua confusão deixarem o tempo passar, para depois o pararem para mim no momento certo. Aí, voltas a deixar que os teus desejos voltem a influenciar-me, provocando na minha fria e apática alma uma chama que queima todo o ar que tente rodear-nos. Já deixei que a minha solidão protegesse a minha felicidade com um escudo, desmotivando a tua; mas desculpaste-te por dares a entender algo que não é real. Aí, minto ao meu espelho, fazendo todos saber que entre nós nada alguma vez existiu.
Não percebo agora por que me mentes. O que queres de mim, afinal? Vais abusar de mim ou não? Decide-te. Não podes deixar que o medo empírico influencie as tuas acções, não sabes como reagirei agora.
Experimentas, uma vez mais, ver o que tenho guardado e a minha fraca resistência incendeia-me lentamente. É disso que tens medo?
Sabes que me pões insana, com tantos raios esperançosos, assoladores, e ondas gigantes de cobardia; mas não acredito que o faças intencionalmente. Podes ter pecado e arrasado outros demónios com tanta diversão e luxúria, mas, desta vez, é a tua inocência que me devassa. É a tua inocência que eu quero contaminar, não quero fazer algo já habitual. Eu vou inovar: vou destruir o teu medo ingénuo, medo esse que me incomoda, por me agradar e provocar tanto. A tua pureza é ignorada frequentemente, mas em mim ela possui um efeito angelical, tentador. Não há algo tão genuíno que me tenha cativado tanto anteriormente.
Eu sou o demónio do teu futuro. Sou a dor do teu desejo, sou a consequência da tua confusão.

Dá-me o prazer de te possuir inteiramente. Beija-me, de uma vez por todas.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

em vez de um bilhete, tire um "ticket"

Estimado cliente,
Por favor retire um ticket e aguarde pela sua vez.
Continente

Hoje, enquanto fazia compras pelo Continente, reparei numa placa que dizia o acima citado. Por algum motivo, não resisti a criticá-lo.
Primeiro, desde quando é que se pode estimar alguém que não conhecemos? Como é que um cliente, que eles nem sequer sabem se vai ler ou não (ou quem vai ler ou não!), pode ser estimado, se nem sabem quem a pessoa é? Assim dito, qualquer um que leia aquela placa e seja cliente pode sentir-se estimado por eles. Por outro lado, a pessoa poderia achar que nem sequer é para si, tendo em conta que ao dirigirmos o cabeçalho com estimado cliente, estamos a dirigir a mensagem a apenas um grupo restrito, tão restrito que raros se veriam incluídos nesse grupo!
Segundo, por que raio é que as pessoas insistem em usar vocábulos estrangeiros, quando os correspondentes portugueses se encaixam perfeitamente no contexto? Alguns dizem que está na moda e é fino, mas, sinceramente, é fino não falar uma só língua dentro de uma mesma frase? Assim, um indivíduo que se dirija a mim e diga tens umas grandes boobs está a ser fino e está na moda! Não poderiam simplesmente pôr lá retire um bilhete, em vez de ticket? Eu compreendo que o conteúdo é facilmente compreensível, ainda que quem o leia sejam pessoas sem acesso ao inglês; mas qual é a necessidade de usar uma língua estrangeira? Não é a nossa língua suficientemente competente para o fazer? Afinal, quem é o público alvo? Os que estão fora do país? Ou os que vão ali fazer compras? É que, caso não tenham reparado, estamos em Portugal!

Por favor, já chega de subestimar a própria língua. Os portugueses não são menos do que os estrangeiros!

terça-feira, 6 de abril de 2010

destruição impossível

Para alguém especial, Íris Melo

Poupar-me-ei de pormenores escusados e de referir aquilo que nos fez chegar até aqui. Também não me referirei sobre os momentos bons que passámos, muito menos sobre as desilusões que ambas provocámos uma à outra, fazendo-me acreditar que a nossa amizade não era mais do que isso: ilusão. Quero, então, mostrar-te que és das pessoas mais importantes para mim e que mais me marcou.
Fomos tão infantis, tão imaturas, tão criancinhas. Assim que nos conhecemos, começámos a criar uma amizade e a especular sobre o que éramos, sem sequer tentarmos conhecer o lado mau uma da outra. Quando pequenos detalhes íntimos nos abordavam, ficávamos assustadas e preferíamos negar a sua existência. Não estávamos de facto a ser amigas, estávamos a querer apoiar-nos no que não sabíamos e mostrar o quão fantástico é ter uma melhor amiga.
Já passei meses com pensamentos entalados, sem coragem de tos dizer. Outros de fora diziam-me que eu tinha medo de ti, mas agora vejo que foi apenas medo de te perder, pois não acreditava já te ter perdido de vez. Quando me abordaste com determinadas opiniões, fiquei tão revoltada contigo que só me apeteceu nunca mais te falar, mas gostava demasiado de ti e custava-me esquecer dois anos de irmandade.
Hoje já não te considero a minha melhor amiga, tu sabes bem porquê, mas sabe-me bem olhar para trás e ver a nossa ignorância. Hoje sei que estarás lá se eu te pedir e sei que sabes mais de mim do que eu imagino. Também sei que já não me consideras a tua melhor amiga, e isso tira-me um fardo dos ombros. Sinto-me orgulhosa por um dia termos tido a capacidade de discutir seriamente, de um dia termo-nos desprendido de qualquer desilusão.
Hoje, sim, consigo dizer-te que sou tua amiga, tendo a certeza de não me arrepender ou enganar. Sei que todo o mal que habitava escondido em ti está revelado agora e sei que, conseguindo ser tua amiga na mesma, sê-lo-ei para sempre, ainda que não te queira mais ver à minha frente.

Nem a barreira da mentira consegue destruir aquilo que é, de facto, puro: é nesse limite que posso distinguir a validade da nossa amizade e a das ilusões.



Eu sei que sofreste, mas não quero que te escondas: é frio e sem amor. Eu não vou deixar que sejas negada. Calmamente, eu far-te-ei sentir pura. Confia em mim, podes ter a certeza. Eu quero reconciliar a violência no teu coração. Eu quero reconhecer que a tua beleza não é só uma máscara. Eu quero exorcizar os demónios do teu passado. Eu quero satisfazer os desejos reservados no teu coração. Tu enganas os teus amores, dizendo que és maldosa e divina; podes ser uma pecadora, mas a tua inocência é minha. Agrada-me: mostra-me como se faz. Provoca-me: tu és a tal.

diz-me "sei lá"

Eu tinha chegado, como é habitual, cedo à escola. Recordo-me de ver alguns dos meus colegas sentados no chão, à porta da sala 32. Estava na minha actual escola e a manhã custava a aparecer. Estava escuro, pouco se conseguia ver para fora das janelas. Julgo ser primeiro dia de aulas de algum período, porém a imagem não me é clara. Sei que estava lá pouca gente e dificilmente o pavilhão do secundário encheu, havendo sempre animação nas notícias que há para contar. A Catarina, de cabelos encaracolados até aos ombros, com uma camisola azul escura, estava sentada no chão, de pernas à chinês, de costas para o resto da escola, em frente à varanda do secundário. A Catarina é uma boa moça, dotada de alguma maturidade, de sentimentos profundos e nobres, de um senso de justiça que a revolta constantemente. Ela é minha amiga e admira-me tanto, gosta tanto de mim, que já antes não se conteu numa aula - ela, que é das alunas mais sossegadas! - e desatou a discutir para me defender. Eu não estive lá para ver, mas confio nas palavras dela e de mais gente que lá esteve a ver, escandalizados com tal revelação. Eu adoro-a. Ela chega sempre depois de mim, assim como toda aquela gente que lá estava, conversando, mas por alguma estranha razão hoje estavam uns dez ali, antes de mim. Isto nunca acontece: só aconteceu uma vez, quando a carrinha teve problemas técnicos e cheguei apenas a cinco minutos da entrada. Rodeada de papelada, estava acompanhada da sua professora Cristina Braga, recebendo explicações dalguma matéria. A Catarina é muito aplicada, ela sabe que precisa de mais estudo e mais esforço do que eu, as suas dificuldades são sempre gigantescas em comparação com as minhas. Mas eu acredito que ela vá passar. Foi curioso, porque a professora estava também, de pernas cruzadas à chinês, sentada no chão, e aquela professora costuma ser mais requintada do que isso. Ela é professora de Português e partilha as turmas de secundário com a minha professora de Português, Susana Neves, não me dando aulas a mim. É baixa, tem a pele com um tom mais bronzeado ou moreno, não o sei dizer, tem o cabelo liso e curto, castanho-violino, talvez, usa óculos, costuma falar com ar intelectual e tem uma reputação confusa: uns dizem que ela é uma bruxa, outros dizem que a adoram, mas todos concordam em ela ser bastante exigente, apesar de explicar bem; eu não o sei dizer, lembro-me de ouvi-la gritar por vezes na sala ao lado e só tive uma aula de substituição com ela, que passámos a falar sobre a escola, sobre leitura e outros temas menos formais - foi agradável, até, mas não foi suficiente para perceber por mim mesma que tipo de professora é, se é que existe algum tipo para si. Eu paralisei a olhar para elas e ambas pararam de estudar para olhar para mim, sorridentes e amáveis. Não sei em que estava a pensar, lembro-me apenas de tocar em cada dedo da minha mão, a Catarina levantar-se e vir ter comigo, carinhosa, e perguntar-me:
- Então, Cármen, como estás? Que estavas a fazer? Por que estás paralisada aí assim a olhar-nos?
Não sabia o que responder. Nesta altura também a professora se levantava e sorridente ajudava a arrumar as coisas da Catarina.
- Estava a fazer contas de cabeça.
- De cabeça?! Credo, sem calculadora é chato. - comentou ela, mostrando a sua preguiça íntima.
- Por acaso até não é, quando não existiam calculadoras ninguém se queixava.
- Ah, então a menina também é desse grupo? - acho conveniente a professora intervir.
- Grupo, que grupo?
A professora levantara-se agora e dirigia-se a mim, com um ar interessado em ouvir-me, menos sorridente e mais natural.
- Então... grupo de pessoas que preferem a mente à calculadora, assim!
- Eu não estou habituada a cálculos mentais, mas apelo à libertação independente da tecnologia, que apenas veio a degradar o que de melhor temos.
- A menina tem que idade?
- Eu? Quinze anos.
- Ah, sim, é a menina que vai fazer anos agora em Abril, já me recordo.
Fiquei assustada: como é que ela podia lançar palpites sobre o meu aniversário? Para que é que o fazia? Estava só a tentar criar uma imagem de pessoa que se interessa por mim e quer mostrar-se conhecedora?
- Eu, em Abril?! Não...
- Ah, esqueça, já me lembro, 4 de Maio, não é?
- Não, professora, 1 de Junho.
Um rapaz de 16 (ou 17?) anos da minha turma levantou-se do chão central do piso de baixo e num passo saltou em direcção à minha turma, como se pudesse voar diagonalmente do piso de baixo para o de cima. Ele, que não deixava crescer o cabelo e rapava-o constantemente, tinha agora tranças.

Estou na minha escola antiga, no balneário de Educação Física, e apresso-me a vestir-me, pois já estava atrasada para Filosofia. A Joana pede-me uma gilete e, depois de lha emprestar, depila os pêlos dos braços. Tenho o cabelo comprido até ao rabo, uma camisola em forma de vestido vermelha, com flores pretas, tenho umas calças de ganga azuis escuras e uns ténis vermelhos e brancos de salto. De repente, já passava quarenta e cinco minutos da entrada para a aula! Entre nós está a irmã do Rui, com cabelos longos e pretos, cuidados e ondulados; veste um vestido de cerimónia branco folhado, parecendo uma boneca. Não sei o que faz ali, com apenas 10 anos. Antigos colegas meus aproximam-se da entrada e nós pedimos mais tempo. Quando saio, sou a última e corro, fazendo a depilação pelo caminho, subindo a escola em direcção ao pavilhão de aulas; mas a porta está fechada e há grupos descontentes de alunos irrequietos batendo na porta. Afasto-me de toda aquela confusão e pergunto aos meus colegas (mas afinal em que turma estou?) o que se passa ali, porque ninguém entra, se estávamos em aula. Triste e zangada, a Ângela diz-me sei lá.
Estou na sala, as mesas estão todas separadas, como em dia de teste, e sei que o professor Simas deverá estar chateado connosco. Pergunto-me o que já deveriam os outros ter dado de matéria nova que eu perdi e, como se nada houvesse sucedido, os meus colegas menos responsáveis pedem metade da primeira aula para estudar MACS e o professor, irónico, exclama:
- Hoje a primeira hora é de MACS. Vamos fazer dois grupos de duas pessoas: eu sou um banco e mais alguém que fique comigo. - aponta a um aluno e pergunta - Ficas tu comigo? Quem mais é o outro banco?
- Eu e o Pacheco, stôr! - candidata-se a Filipa.
- Muito bem, então é assim: cada folha que se passa para a frente é mais dois valores de capital positivo e cada folha que se passa para trás o contrário. Entendido, pessoal?
Recebo uma folha da Helena, que está à minha frente, com um ar de disfarce da tristeza e isso preocupou-me. Ela não queria tentar resolver o problema? Ela vira-se para a frente e espera que a tarefa mude. Era com ela. Mas como é que aquilo se resolvia mesmo? Leio a folha e ouço um colega meu atrás de mim a ler baixinho para ele. Desejava que se calasse, para eu me poder concentrar. Vejo crianças desenhadas no papel, umas a saltar, outras quietas, outras brincam. Aquele exercício parecia uma folha daquelas que os professores nos dão para fazer na primária. Mas o que é que aquilo tinha de filosófico e conveniente para a aula? Não importa, isso logo o professor dirá. Desvendava as frases através das imagens: meninas brincam, pulam, saltam e caem. É dia 16 e, por esta hora, o menino pato toma banho.

Estranho? Por alguma razão, foi o meu sonho esta noite. Note-se que não é um texto negativista típico da minha escrita, mas assustou-me, devido à mensagem que quererá dizer e, uma vez mais, à repetição perseguidora do número 16.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

consciência perfeita da felicidade superior imperfeita

Ora, é um facto incontestável que aqueles que têm um conhecimento igual e uma capacidade igual de apreciar e de gozar, dão uma decidida preferência ao estilo de vida que emprega as suas mais altas faculdades. Poucas criaturas humanas consentiriam em que as convertessem nalgum dos animais inferiores, a troco da promessa de um gozo pleno de todos os prazeres bestiais; nenhum ser humano inteligente consentiria em ser um louco, nenhuma pessoa culta em ser ignorante, nenhuma pessoa com sentimentos e consciência em ser egoísta e vil, mesmo que pudessem ser persuadidos de que o louco, o ignorante ou o velhaco estão mais satisfeitos com a sua sorte do que eles com a deles. Não quereriam abdicar do que possuem de superior, em troca da mais completa satisfação de todos os desejos que têm em comum com eles. Se alguma vez imaginassem querê-lo, seria em casos de uma infelicidade tão extrema que, para lhe escaparem, trocariam a sua sorte pela de qualquer outro, por muito indesejável que lhes parecesse. Um ser dotado de faculdades mais elevadas necessita mais para se sentir feliz, é provavelmente mais susceptível de um sofrimento mais agudo, e, com toda a certeza, em mais larga medida vulnerável a esse sofrimento, do que um de tipo inferior; mas, a despeito de todas estas desvantagens, nunca pode desejar verdadeiramente afundar-se no que ele sabe ser um grau inferior da existência. Podemos dar a explicação, que quisermos, desta repulsa; poderemos atribuí-la ao orgulho, nome que se aplica sem qualquer discernimento aos sentimentos mais estimáveis e a alguns dos menos estimáveis de que a humanidade é capaz; poderemos relacioná-la com o amor à liberdade e independência pessoal, que foi entre os Estóicos um dos meios mais eficazes para inculcá-la; ou com o amor ao poder, ou com o amor à excitação, que realmente contribuem para ela e dela fazem parte; mas o que mais apropriadamente podemos ver nela é um sentido de dignidade que, de uma forma ou doutra, todos os seres humanos possuem, não com as suas faculdades mais elevadas, constituindo uma parte tão essencial da felicidade daqueles em quem é forte, que nada que com ela colida pode para eles constituir, a não ser momentaneamente, objecto de desejo. Quem supõe que esta preferência implica um sacrifício da felicidade - que, em circunstâncias proporcionalmente idênticas, o ser superior não é mais feliz do que o inferior -, está a confundir as ideias, bem distintas, de felicidade e de satisfação- É indiscutível que um ser, cuja capacidade de gozar é baixa, tem maiores possibilidades de satisfazê-la totalmente; e que um ser altamente dotado sempre sentirá que, tal como o mundo se encontra constituído, toda a felicidade a que pode aspirar será imperfeita. Mas pode aprender a suportar as suas imperfeições, se de algum modo são suportáveis; e estas não o farão invejar aquele que é de facto inconsciente delas, a não ser que também não se aperceba do bem que essas imperfeições afectam. É melhor sr um homem insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um louco satisfeito. E se o louco, ou o porco, são de opinião diferente, é porque apenas conhecem o seu próprio lado da questão. Os outros, com quem os comparámos, conhecem ambos os lados.
Poderia objectar-se que muitos que são capazes dos prazeres superiores, por vezes, sob a influência da tentação, os pospõem aos inferiores. Mas isto é perfeitamente compatível com uma apreciação total da superioridade intrínseca do prazer mais elevado. Por debilidade de carácter, muitas vezes os homens se decidem pelo bem mais fácil, embora o saibam menos valioso; e isto tanto quando a escolha se faz entre dois prazeres corporais, como quando se faz entre o corporal e o espiritual. Buscam o gozo sensual que prejudica a saúde, embora saibam perfeitamente que a saúde é o maior bem. Poderia ainda objectar-se que muitos que começam por entregar-se com entusiasmo juvenil a tudo o que é nobre, à medida que avançam em idade caem na indolência e no egoísmo. Mas não creio que os que passam por esta vulgar transformação escolham voluntariamente a mais baixa classe dos prazeres, de preferência à mais elevada. Acredito que, antes de se entregarem exclusivamente a uns, já se tinham tornado incapazes dos outros. A capacidade para os sentimentos mais nobres é, em muitas naturezas, uma planta muito tenra, que morre facilmente, não só por influências hostis, como pela simples falta de alimento; e na maioria das pessoas jovens extingue-se subitamente se as ocupações a que a sua situação na vida as obriga, ou o meio social em que as lança, não permitem o exercício dessa alta capacidade. Os homens perdem as suas aspirações mais elevadas, tal como perdem a sua finura intelectual, porque não dispõem de tempo ou de oportunidade para as cultivarem; e entregam-se aos prazeres inferiores, não porque deliberadamente os prefiram, mas porque são os únicos a que têm acesso, ou os únicos que podem gozar por mais tempo. Poderia perguntar-se se alguém que tenha estado igualmente próximo de ambas as classes de prazeres, alguma vez preferiu serena e conscientemente a inferior; se bem que muitos, de todas as idades, se tenham consumido no intento inútil de combinar as duas.
Mill, John Stuart; Utilitarismo; Atlântica Editora; 1976; Coimbra, 2.ª Edição