segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pedaços de Memória que o Tempo Dissipou


     Ariana sentava-se entre as folhas que jaziam a seus pés, vivas e cansadas das viagens que faziam, quais pássaros guiados pelo vento. Estas folhas, que traziam mensagens de nostalgia, faziam-na perguntar-se a si mesma se valeria realmente a pena esperar tanto por algo que nem conhece, mas que sabe existir, porque o sente.
     A madeira humedecida que suportava os seus pensamentos dava-lhe o conforto necessário para falar à maresia dançante que coadjuvava a expansão do seu cabelo pelo ar, em movimentos ondulantes e surrealmente apaixonantes. A água salgada que não conseguia tocar beijava-a silenciosamente, tranquilizando os seus medos mais ferozes e libertando as pequenas mágoas que a sua esperança ia formando, à medida que provava a sua determinação em ser feliz, num mundo feliz.
     Ao longe, ouvia os sinos e os tambores, marcando o ritmo das vidas de todos os que não os mandavam tocar. Deste cais, era-lhe possível escutar com atenção o que estes sinais cantavam, e não meramente ouvir. Se pudessem ler as lufadas por de trás daquele sorriso calmo e ligeiro, veriam, em vez de simpatia, conspiração. Isso nunca tinha acontecido antes, porque ninguém se importa com o que alguém que não toca pensa ou sente, porque serão sempre meros pensamentos abstratos, dada a impossibilidade de ação. Limitações a que Ariana assistia passivamente, não obstante o brechtianismo interior que estava na base da força e da coragem que faziam de si uma mulher excecionalmente bondosa. E perigosamente contestatária.
     Mais perto, ouviu o seu nome ser aclamado por entre as encenações de vidas consideradas normais, à sua direita. De olhos arregalados e boca ligeiramente aberta, devido à constipação que refletir lhe provocara, virou o seu rosto, para compreender o que se passara. O seu cabelo esvoaçou de surpresa para o lado contrário e exibiu a magnitude de uma mulher esbelta e simples.
     E nunca acontecerá.

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7 comentários:

H. Santos disse...

Gostaria de compreender melhor a parte da critica.

Anónimo disse...

H. Santos: O que Ariana mais queria era "ser feliz, num mundo feliz", mas, como o texto demonstra ("impossibilidade de ação"), isso é algo pelo qual nem ela sabe se vale a pena esperar.
Porquê?
Por causa da influência excessiva da religião na sociedade (os "sinos" ditam às pessoas o que fazer), da burocracia do aparelho do Estado (os "tambores") e passividade dos cidadãos ("nunca acontecerá" uma mudança, enquanto as pessoas não se importarem em "escutar com atenção (...) e não meramente ouvir" e não tomarem uma atitude).

H. Santos disse...

Estava bem disfarçada essa critica. Especialmente na parte dos tambores.

Eu acho que as pessoas escutam, simplesmente lhes é mais aprazível não orquestrar uma mudança.

Anónimo disse...

H. Santos: Isso também acontece, mas eu acho que, sobretudo, ouvem, não escutam. Estão demasiado concentradas no entretenimento para escutarem, para detetarem o que está nas entrelinhas. É mais fácil deixarem-se guiar.

Anónimo disse...

H. Santos Relativamente à crítica disfarçada (lembrei-me agora), isso era intencional. Não era meu intuito produzir um texto revolucionário, mas sim algo delicado e mais feminino, menos robusto. A Ariana que concebi não é uma mulher de armas, mas sim uma pessoa muito calma e reservada... fascinou-me a ideia de penetrar nos pensamentos de alguém assim.

H. Santos disse...

Compreendi, estou educado :]

Eu compreendo que as pessoas estejam imersas na entretenimento, mas estão porque querem, vivem assim porque seguiram esse caminho, não são uns coitados. O mundo como eu e tu conhecemos foi-lhes apresentado da mesma maneira, tomaram foi as opções erradas (aparentemente, porque apenas sou dono apenas da minha verdade), não podemos dizer que se deixaram guiar como se fossem inconscientes.

Anónimo disse...

H. Santos: Precisamente por causa do que disseste é que eu acho que se deixaram guiar. Ninguém as obrigou, foram elas que deixaram. Por isso mesmo é que elas também são alvo de crítica, e não de lamento.