sábado, 3 de novembro de 2012

Liberdade é Ser

«Por um sistema desde longo tempo combinado foram os portugueses privados de tudo quanto pertencia ao Governo, à legislação e administração da Fazenda: todos esses importantes objetos foram reservados unicamente para certos indivíduos privilegiados e que dispunham de tudo sem responsabilidade alguma. Não havia entre nós quem ousasse pedir contas das rendas do Estado, quem pedisse as razões e os motivos de tantas leis ineptas e parciais. Nós não tínhamos verdadeiramente Pátria.»

Astro da Lusitânia, nº 1, 30 de outubro de 1820

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Mudanças

     Era só para avisar que mudei de conta. A pessoa é a mesma, os blogues são os mesmos, tudo é o mesmo, menos os links. Links direcionados para a antiga Cármen não terão mais validade.
     O mesmo se passará com o url do blogue, que deixará de ser cween-crazy.blogspot.com, para ser controlo-demente.blogspot.com.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Nuvem de Pó

     O nevoeiro cobria-me o corpo, humedecendo os desalinhados caracóis negros que esvoaçavam levemente, tropeçando, preguiçosos, nos meus ombros envoltos de azul. Na minha frente, mergulhava o azul sobre a verde terra, deixando uma neblina lilás acima, mais leve e dissipada. Os meus olhos limitavam-se a fitar as partículas douradas que pareciam emanar de todas as pequenas coisas, flutuando até às nuvens.
     Tinha ficado horas a ocupar o lugar de espetadora, a assistir àquele musical feito dos mais intrínsecos elementos, aqueles que não partiram de nós, mas que foram nosso berço. Foram, também, palco de tantas explosões de raiva e cinzas, que não foram expelidas por nenhum vulcão. Foi, sim, o ser humano que se achou dono de quem o sustentava, talvez por assim o fazer e, por isso, transparecer uma certa dependência, de quem suplica misericórdia, em troca de uma vida devota. É a tendência do Homem em ser conceituado assim que não necessita da humildade, nem do afeto dos demais. Perde o espírito crítico e julga-se no direito de criticar tudo o que o rodeia e até mesmo o que inventa, por assim convir, sem nunca detetar a infelicidade que o poder subjaz.
     Assim tinha decidido ficar, quando a queda duma velha árvore instável resolveu tirar-me o sono e lembrar-me de que, àquela hora, poderia ter o privilégio de apreciar o que sou, o que me fez e o que tentam impotentemente destruir. Por entre o bosque penetrei, e os avisos das corujas aconselharam-me de não ser má ideia caminhar pela orla da floresta. A um quilómetro dali, avistava-se uma cabana com aspeto velho. Receando incomodar ou ser incomodada, desviei-me daquela planície e subi a um monte que ficava na sua retaguarda, bem ao lado, afinal, do bosque. Dali, via-se todo o vale, estendido a meus pés, qual maré baixa numa praia desabitada.
     Sentei-me. O vento soprava de longe, cansado, como quem, não aguentando, corre esporádica e pausadamente. As minhas mãos, na terra molhada, estavam apenas ligeiramente mais frias do que o meu rosto. Tinha os lábios gretados e feridas no peito, vestígios de uma juventude que esmorecia. Transportava comigo um cansaço, não um físico, mas um cansaço de viver, não pela quantidade, mas pela qualidade. Muito trabalho de homem tinha feito, e muita consideração de animal me tinham dado. E ali me achava, repousada e desprotegida, como uma menina inocente.
     Deixei-me cair para trás. De nada adiantava chatear-me, preocupar-me ou problematizar. No final, é tudo isto que somos: turistas. No final, sobra isto apenas: um corpo ferido e descurado que a brisa refresca.
     Compreendi, então, por que os galos me haviam acordado aquela manhã. Tudo o que eu precisava era aquele momento, de união com a terra, em comunhão com o ar: senti-la em mim e sentir-me nele, qual nuvem concreta. Era aquilo, saber viver: deixar os problemas, criados por entretenimento, e agir de acordo com o misticismo do amanhã. Eu nunca levarei os meus problemas comigo, por isso, aqui, nestas plantas suaves, deixo todo o passado, em troca do presente. Era isto, a vida.

domingo, 17 de junho de 2012

Liberdade...

Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
(Não há morte para o vento,
Não há morte).

Se, ao morrer o coração,
Morresse a luz que lhe é querida,
Sem razão seria a vida,
Sem razão.

Nada apaga a luz que vive
Num amor, num pensamento,
Porque é livre como o vento,
Porque é livre.

Carlos de Oliveira

... está dentro de nós, e não nas ações que nos são permitidas.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Personagens de uma Paixão Platónica

Conteúdo para Adultos


    A pele morena que me encanta, os carnudos lábios que me seduzem. As suas mãos nas minhas costas, descendo gentilmente, apertando-me contra o corpo que me consome. As minhas na sua nuca, aceitando, entregando, retribuindo o desejo de querer, de tocar, de fazer. Em volúpia desatenta, mas concentrada - entre dar e receber, num afastamento intencionalmente falso, num aproximar de respirações ofegantes que definem dois corpos suados. A pressão entre desejos, a divergência convergida, convergente, ardente. A força entre um e outro, que do empenho de ambos parte, a não desistência, a resistência, a incomplacência. O amar, o querer, o rasgar, o ter, o prazer!
     Lá fora, harpas cantam, pianos suspiram. A brisa morna, soprando das árvores, sussurra aos ouvidos canções de embalar, mais frescas do que os corpos, que vibram, alargando, massajados.
   O repousar da fé em mútuo olhos, espiritualmente trocados. O tocar de peles que se conhecem e não se cansam uma da outra. O saltar de um peito que parece nunca se habituar ao explorado, sendo sempre perdurado. O sentir pequenos e ásperos pêlos caraterísticos na ponta dos delicados dedos de seda. A fusão entre braços por abraços. Os passos das aves, irradiantes de calor que descontrai e quebra a tensão muscular. Os frágeis dentes de leão que voam no azul meio: azul de carícia, de mimo, de ternura. O vento que passa e os cabelos que dançam. Os narizes que trocam pequenas e cuidadosas impressões, como tímidos amantes que se entregam por dedicação, cujos rostos aquecem, um colorindo-se, o outro observando-o.
     A cabeça que se encaixa no ombro, o braço que segura o tronco e os dedos que se enlaçam. A paz, devota.

domingo, 29 de abril de 2012

Prémio Dardos

     A Olinda P. Gil ©, já cliente cá da casa, enviou-me mais um prémio de literatura aqui para Controlo Demente, através d'A Casa do Alfaiate, o seu blogue principal. Quase dois meses depois, decido lembrar-me da generosidade e deixar a preguiça de lado.


     Sem modéstia, nem acanho, devo confessar que deve ser, de longe, um dos selos mais importantes que já recebi, tendo em conta que elogia não só a minha capacidade de escrever, mas também as mensagens que procuro sempre deixar, em cada texto que redijo, por mais subliminares que sejam - e por mais que eu note que poucos as conseguem detetar e decifrar. Eis, portanto, o texto oficial:

«O Prémio Dardos reconhece o valor que cada "blogueiro" mostra em cada dia no seu desempenho em transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, ... que, em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras, entre as suas palavras.»

      É meu dever, assim, indicar outros blogues que mereçam tanto ou mais do que eu o mesmo distintivo. Aqui estão eles*:

Bem hajam!

*A aceitação deste reconhecimento implica três regras:
  1. Exibir a imagem;
  2. Colocar uma hiperligação para o blogue que lho enviou;
  3. Escolher 15 blogues para passar o Prémio Dardos (quem contar os meus leva um carolo).

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pedaços de Memória que o Tempo Dissipou


     Ariana sentava-se entre as folhas que jaziam a seus pés, vivas e cansadas das viagens que faziam, quais pássaros guiados pelo vento. Estas folhas, que traziam mensagens de nostalgia, faziam-na perguntar-se a si mesma se valeria realmente a pena esperar tanto por algo que nem conhece, mas que sabe existir, porque o sente.
     A madeira humedecida que suportava os seus pensamentos dava-lhe o conforto necessário para falar à maresia dançante que coadjuvava a expansão do seu cabelo pelo ar, em movimentos ondulantes e surrealmente apaixonantes. A água salgada que não conseguia tocar beijava-a silenciosamente, tranquilizando os seus medos mais ferozes e libertando as pequenas mágoas que a sua esperança ia formando, à medida que provava a sua determinação em ser feliz, num mundo feliz.
     Ao longe, ouvia os sinos e os tambores, marcando o ritmo das vidas de todos os que não os mandavam tocar. Deste cais, era-lhe possível escutar com atenção o que estes sinais cantavam, e não meramente ouvir. Se pudessem ler as lufadas por de trás daquele sorriso calmo e ligeiro, veriam, em vez de simpatia, conspiração. Isso nunca tinha acontecido antes, porque ninguém se importa com o que alguém que não toca pensa ou sente, porque serão sempre meros pensamentos abstratos, dada a impossibilidade de ação. Limitações a que Ariana assistia passivamente, não obstante o brechtianismo interior que estava na base da força e da coragem que faziam de si uma mulher excecionalmente bondosa. E perigosamente contestatária.
     Mais perto, ouviu o seu nome ser aclamado por entre as encenações de vidas consideradas normais, à sua direita. De olhos arregalados e boca ligeiramente aberta, devido à constipação que refletir lhe provocara, virou o seu rosto, para compreender o que se passara. O seu cabelo esvoaçou de surpresa para o lado contrário e exibiu a magnitude de uma mulher esbelta e simples.
     E nunca acontecerá.

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sábado, 14 de abril de 2012

poder vs. felicidade

«De que vale mostrar ao mundo que se é forte militarmente, se não se conseguem resolver eficazmente os problemas internos?»

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quinta-feira, 12 de abril de 2012

Tantos muros

Quando fez dez anos que derrubaram
O muro que dividia o mundo,
Um mundo antes repartido
Por interesses desiguais,
Tantos e tantos comemoraram
Pois o "muro da vergonha"
Agora não existiria mais.
E então não existe mais vergonha?
Enfim aprenderam a repartir as flores?
O sorriso já não morre nas crianças?
O sangue corre apenas pelas veias?
Já extraíram da política a peçonha? (...)
Os oceanos não se encontram mais doentes? (...)
E então?
E tantos comemoraram
A queda de um muro a mais,
Mas tantos nem se lembraram
Que dividindo este mundo
Ainda há tantos muros iguais.

Francisco Simões

domingo, 8 de abril de 2012

Assim eu pudera...

Estrelas brilhantes, caídas do céu,
Pousam nos meus olhos, fazendo-me réu.
Escrava da azul neve, nas pálpebras o Mundo
Se quebra, pestanejando, pedaços de segundo.

Pudera eu, Mãe Natureza, tua filha não ser,
Para em surreal rosa o meu toque te envolver
E, sem promiscuidade, me declarar amante
Desse teu orgulhoso cabelo de diamante!

Pudera eu, Mãe Natureza... Eu, assim, queria
Cheirar-te o rosto, maquilhado de alegria,
Morder-te o nariz, soprar-te ao pescoço,
Fazer-te sentir o meu próprio alvoroço.

Assim eu quisera, Mãe Natureza,
Amar-te a ti, pela tua singular beleza,
Envolver o teu perdão e esquecer a tua vingança
Pelos ventos dos quais sou responsável de mudança.

Assim eu pudera...

sexta-feira, 30 de março de 2012

"Ma vie s'anime dans ton sourire"


    O relvado de lã que cobre as minhas costas conforta-me, dissipando as únicas dores que costumo ter, desde que abro a janela ao Sol. Outrora, tinha medo que a ventania entrasse para a casa e esfriasse o quarto. Quarto, diga-se de passagem, já frio. Não receava, portanto, perder o calor, mas sim intensificar o clima que já me agonizava comodamente. Cansei-me, assim, de tentar isolar o ar e correr apenas as persianas e os cortinados, tal como deixei de usar lâmpadas. A luz do Sol, para ser calor, precisa de se infiltrar verdadeiramente -- e não ser simulada ou barrada parcialmente. Não há meio termo para tudo o que é natural e, portanto, espontâneo -- ou, em última análise, verdadeiro.
     Na frente dos meus olhos, vejo a luz correr para me alcançar, por entre a renda branca que baila por entre as tonalidades laranja, verde e rosa, quais holofotes que lembram auroras. Estico-lhe a mão e sinto a simplicidade de ser genuíno arrepiar todos os cabelos do meu corpo, provocando em mim uma sensação de prazer, frescura e calma, à medida que a paz interior se entrelaça e avança pela ponta das minhas unhas, até colocar a sua aliança em mim. A minha cabeça pende da borda da cama, sinto o calor massajar-me a nuca e imagino que os caracóis negros desalinhados que decoram a minha cabeça devem estar agora ruivos, de banhos de Sol. Tu sempre gostaste da forma como o meu cabelo se assemelha à juba de um leão. Não é, contudo, a selvajaria que te prende a mim. A aparência tropical limita-se a incendiar estes corpos que não se desgrudam.
     A minha mente maga transforma, subtilmente, as ondas dançarinas nos meus olhos em memórias de uma realidade com a qual nunca deixei de sonhar. Pessoa sussurrava que a realidade é apenas o ponto de partida para o sonho, mas foi com a maior racionalidade que o sonho nos fez partir para a realidade.
     O meu peito, todo coberto pela tua existência, sente um calor não suado, um calor intenso e amado. No meu ombro, tenho uma cabeça que arfa sobre o meu pescoço e me faz saber que nenhum mal me pode acontecer. Nos teus braços, repousa toda a minha fragilidade, cujo saber se dissipará com o tempo, até à deterioração fatal que nos espera a todos. Um dia, a doce textura da tua pele não será mais sentida com o toque dos meus dedos. Aquele calor que, no entanto, emana de nós, por mais conscientes que sejamos, é a vitória de uma vida. Por mim, sei que poderia deixar de existir daquele momento em diante, porque seria sempre recordada como alguém que alcançou a felicidade maior que pode existir num ser humano...
     Até lá, tenho a proximidade de dois corações que batem em uníssono, tenho as cores mais bem pinceladas na minha mente, e tenho as tuas costas musculadas sobre o meu tórax, debaixo das minhas mãos... E, com elas, acaricio quem está do outro lado e sente a mesma ânsia de viver que eu. Essa, sim, é a melhor recompensa que se pode dar a alguém por crer, por querer, por esperar... A textura ondulada e fria dessa tua pele de caramelo, cujo odor é mais suave do que a maciez do algodão como nuvem de plumas.
     Nunca deixes que nada quebre aquilo que construímos. É tudo o que te peço em troca.

quarta-feira, 28 de março de 2012

No momento do essencial...

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...o supérfluo desaparece.

Ou melhor: o exterior, como a pele, deixam de ter significância quando aquilo de que se trata é urgente.

Será que, de facto, os preconceitos que nos dominam são verdadeiramente importantes?

quarta-feira, 7 de março de 2012

"Sempre que um homem sonha / O mundo pula e avança"

(A. Geadão)

     O sonho é um acessório que o Homem traz consigo quase sempre no bolso, para o caso de sentir sede, pelo excesso de realidade consumida.
     De facto, o Homem (perdoem-me a generalização, mas a minha imaginação não consegue esboçar quantidades significativas de oposição) sente-se constantemente forçado a encaixar numa sociedade, cuja construção não foi obra sua. Por mais que se tente adaptar, há sempre sentimentos recalcados, resultantes do seu inútil (mas frequente) conformismo. Por isso, sonha. Sonha nas pausas de trabalho, sonha no trabalho pausado. Quase involuntariamente, vê as pessoas que não o observam a amá-lo, mas vê também as bofetadas que a moral o impediu de dar. Então, é despertado pelo barulho que vem de fora (e o ruído interior silencia-se).
     É, porém, nestes sonhos que encontra motivos para sorrir. Ele bem tenta (ah! Se tenta!) persuadir os outros de que as cores que a imaginação e o desejo em simultâneo pintam lhes são realidades fictícias. Os outros, contudo, ficam tão persuadidos como ele próprio, porque, afinal, ninguém sabe um dos mandamentos que a natureza humana ordena: o orgulho consegue ter mais força do que a verdade. Se alguém não sonhasse, por que diria que alcançou os seus objetivos? E por que se deprimem os que nada fazem? A frustração e o sucesso são, então, o resultado da tentativa de aplicação do quê? A expectativa e o sonho são irmãos gémeos, cujas divergências raramente se descobrem.
     Que todo o ser humano sonha, já todos, assim, sabemos. Que o sonho comanda a vida, aí já nem todos o admitimos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

3. Carta aos teus pais

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?


     «Acordei esta manhã com um sorriso na minha cara e ninguém me vai deitar abaixo hoje. Tenho sentido que nada tem corrido à minha maneira ultimamente, mas decidi aqui mesmo, agora mesmo, que as minhas perspetivas mudarão. É por isso que vou dizer adeus a todas as lágrimas que chorei, a todas as vezes em que alguém magoou o meu orgulho, a todas as sensações de que não me deixariam viver a vida, e dar um tempo para ver aquilo que é meu.
     Eu vejo cada oportunidade que tive e agradeço por tudo o que me deram.
    Eu acredito que me consigam tirar qualquer coisa, mas não poderão ter sucesso em me tirar a minha paz interior. Podem dizer o que quiserem sobre mim, mas eu vou continuar a aguentar. Eu vou continuar a cantar a minha música.
    Eu não quero habitar na dor de novo. Não vale a pena reviver o quanto eu sofri nessa altura, em relembrar demasiado bem o inferno em que eu me senti quando me estava a desviar da fé. Cada passo que eu der é a rumo de um dia melhor, porque eu me vou despedir de cada mentira e de todos os medos que guardei durante demasiado tempo, de todas as vezes em que senti que não conseguiria tentar, de todo o negativismo e conflito; porque há demasiado tempo que me tenho debatido, não conseguia continuar, mas agora percebi que me estou a sentir forte e que estou a seguir em frente.
   De todas as vezes em que tentei ser aquilo que queriam que eu fosse, nunca saiu naturalmente, por isso acabei na miséria. Estava incapaz de ver todo o bem à minha volta, ao desperdiçar tanta energia naquilo que achavam de mim -- em vez de simplesmente me lembrar de como respirar.
     Eu tomei uma decisão: nunca desistir, até ao dia em que morrer, independentemente do que for.
   Não conseguem tirar qualquer coisa de mim. Eu acredito que consigam fazer o que quiserem, dizer o que quiserem dizer. Podem dizer o que quiserem, mas eu vou continuar.
     Digam o que disserem, eu vou continuar a cantar a minha música.»
(adaptado)

domingo, 4 de março de 2012

Homme Fatal

Conteúdo para Adultos


     Sentada de lado no cadeirão escarlate, via as minhas pernas despidas, apoiadas no braço direito da poltrona, mudarem de cor, conforme o crepitar das labaredas. O amarelo avançava progressivamente em relação à minha direita, debruçando-se por cima de mim para me abraçar a cintura. Não o conseguindo, um vestígio de sombra ficava desde o meu nariz até à biqueira das minhas sabrinas cor de cinza. Na transição entre o sonho e o sucesso, estava aberto no colo da minha saia cinzenta pregada um espesso volume, onde as rivalidades entre lobisomens e vampiros me eram explicadas. O confortante calor, que, naquela noite de fevereiro, era expelido da lareira no meu lado esquerdo, permitia que eu tivesse apenas a camisa branca vestida, donde pendia a minha gravata vermelha e amarela, e as mangas arregaçadas.
     Àquela hora, não costumavam estar muitas pessoas na Sala Comum. Atrás de mim, deveriam estar umas quatro ou cinco raparigas histéricas e um pouco invejosas. Pelo menos assim me pareciam, quando costumavam ver o garanhão desprezá-las para me dar a atenção que ninguém supostamente conseguiria despertar nele. Eu ouvia-as comentar as fofocas mais pindéricas que a imprensa poderia vender e as bugigangas mais dispensáveis que poderiam ser comercializadas. Mais adiante, estavam dois rapazes e uma rapariga de volta dos papéis, quiçá a escrever um relatório para a manhã seguinte ou apenas a fazerem o tempo livre render. Digamos, um deles não deveria certamente estar ali pelo segundo motivo, talvez até nem tanto pelo primeiro, mas mais para não se sentir só. Nunca tinha percebido como uma pessoa tão dependente dos outros pudesse ser aceite como uma de nós, embora compreendesse que talvez apenas eu visse algo de errado naquele rapaz. Mais imparcialmente, era a minha tendenciosidade contra a ingenuidade deles. Como tal, e por questões de respeito, eu limitava-me a não lhe dar muita atenção.
     Sentia-me preguiçosa em todo aquele meio agradável e estiquei-me para trás. Deixei a cabeça e os braços penderem no sofá e fiquei a ver o teto com carpete escarlate e o chão com candeeiros. O meu corpo foi perdendo força e os meus músculos relaxaram, em verdadeira paz física. Fechei os olhos e lembrei-me do cheiro do negro cabelo dele. Ah, como gostava que me envolvesse com aqueles seus fortes braços e preenchesse com os seus lábios rosados e carnudos o espaço entre os meus! Como gostava desse seu jeitinho mal intencionado e de como colocava o seu braço à volta dos meus ombros e me aquecia as bochechas com beijinhos, apertando-me com força! E como gostava de não precisar que me admitisse nada...
     -- Olá, estudiosa -- uma voz masculina e grave me disse em tom alegre e malandro. Abri os olhos e paralisei por momentos, como que ainda a processar a informação. Levantei a cabeça e, para minha surpresa, ali estava ele, debruçado sobre as costas do cadeirão, com um ligeiro sorriso nos lábios e os cabelos que nem cortinados ondulados, caídos.
     -- Estás aí há muito tempo?
     Abriu o sorriso por completo e, no mesmo ar sedutor, levantou-se do sofá e contornou-o. Parou encostado às minhas pernas, quase a meu lado, e vi o seu corpo abaixar-se e avançar em direção a mim, enquanto senti o sangue correr mais depressa e o peito inchar por causa aquele ar galã que ele tinha. Não me lembro de pensar mais nada, nem de reagir, quando pousou uma mão de cada lado do meu pescoço e avançou a sua cara em direção à minha:
     -- Há suficiente para perceber que essa camisa te fica muito bem.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A praia não se debruça sobre mim

     No parapeito sobre o qual me debruço estende-se toda a praia da minha vida. Lentamente esta tem decorrido, consoante aquilo a que todos parecem chamar de aspirações e barreiras. Por vezes, não sei se alguma é minha ou se em mim foram despojadas. Tudo o que sei limita-se àquilo que me foi sonhado em mãos fortes, embora delicadas.
    O Sol emerge do azul do aquário que reflete o oceano que sou. Exclama o meu nome e envia-me os seus filhos, que me convidam a dançar a coreografia que todos procuram nestes cenários limitados. Não o encontram e dizem-se insatisfeitos, adormecidos no materialismo que pretende alojar-se neles. Se ao menos eles, com os seus olhos, vissem o quadro que vejo! Certamente saberiam que a felicidade mortalmente eterna não está no que finda. Não procurariam, se não neles próprios, aquilo que mais ninguém lhes pode dar. Necessariamente, não se veriam sujeitos a aceitar a alegria pelas coisas que nem os honrados clássicos tinham.
     Neste quadro que a minha mente pinta, sei que são minhas as cores que o iluminam. O melhor de tudo: eu não as comprei, nem fabriquei a partir do que encontrei. Sobre este parapeito a que chamo vida debruço-me eu e voo acima daquilo que os outros não acreditam saber pular, porque eu vejo o que a minha imaginação sonha. E sou feliz.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Neocolonialismo

«A diplomacia inteligente do período da Guerra Fria conseguiu algum espaço para a soberania dos Estados, mas e o povo?»


lost causes. by ~moondrums on deviantART

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Odor Lisboeta a Putrefação

     Estrada abaixo, António calçou as pegadas molhadas do seu preto envernizado. Cada marca deixada era como um meteorito que colidia com o betão, causando ainda mais fendas. A água era a atmosfera que protegia as fendas de serem mais do que algumas fissuras moderadamente profundas.
     O cheiro a carvão das barraquinhas ambulantes de castanhas assadas misturava-se com os odores a suor que o aglomerado de trabalhadores e turistas expelia habitualmente, como um odor intrínseco. Poderia ter sido compreendido como um aconchego ou um realce estilístico, mas, na verdade, quando baixava a cabeça e enfiava o queixo no cachecol coloridamente riscado não queria aquecer a cara com o bafo preso pela roupa, nem exibir o cabelo castanho espigado na sua nuca, mas sim esconder os olhos da paisagem de água suja nas pedras da calçada.
     Desde que lhe disse que ela precisava de ser menos precipitada e de dar mais espaço a cada coisa, a relação entre ambos nunca mais foi clara. Ela encavalitava tudo aquilo que lhe dizia respeito e desarrumava tudo de propósito. António não podia virar a esquina que lá estava ela, a barafustar com algo. Quando ele lhe perguntava por que era assim, ela ficava ciumenta e mandava-o ir ter com a ex. Esperava, certamente, que ele a mimasse e mostrasse que a ex lhe era inferior.
     Ele, porém, sentia a culpa cair-lhe em cima. A ex, pelo menos, não se chateava com tanta facilidade, nem se adornava. Era naturalmente linda. Pobre, mas verdadeiramente simples. Emanava as cores de dentro de si e não atraía a si toda a espécie de gente. Mas António deixou-se levar pelo que os outros diziam e acreditou na adoração que todos os outros faziam à que viria a ser a sua esposa e maior dor de cabeça.
   Por isso, baixava a cabeça e acarretava com as birras da amada. Lá fundo, perguntava-se se era mesmo aquilo que queria para passar o resto da sua vida.
     Ah, Lisboa, como és complicada!

Lisbon ::4 by ~MisterKey on deviantART

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Liebster Blog

     Mais um selo aqui para o cantinho.

     Tenho de agradecer à Olinda, que se lembra sempre de dar um empurrãozinho, embora isto por aqui ultimamente não ande muito agitado (diga-se, de passagem, que não é por falta de ideias, mas sim de cansaço e de falta de tempo, o que significa que em breve isto por aqui deve sofrer de cheias líricas).

Kiss it all goodbye (I am the Mastermind) 
Ironia do Destino (Christian V. Louis) 
Diário da Srta. Lóri Capitu (SRTA. LÓRI CAPITU) 

      Para quem não sabe, Liebster significa amado, adorado ou querido, em alemão.


     Pois aqui estão as regras do amor:
  1. Publicar o link de quem enviou o selo.
  2. Colar o selo.
  3. Passar o selo a cinco blogues que tenham menos de 200 seguidores.
  4. Avisar, através de um comentário, os proprietários dos blogues selados.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Maré Estrategicamente Brava

Conteúdo para Adultos


     Cada mulher é um mar de mistérios e atrai a si qualquer marinheiro voluntário. Qualquer vocação marítima encontra em si o próprio conceito atrativo, quase inconsciente. Nenhum marinheiro que goste verdadeiramente do mar consegue passar ao longe, talvez numa ponte qualquer, ver o mar e não sentir qualquer tipo de melancolia agradada. E eu estava precisamente à beira daquele mar que todos os dias me vinha molhando os pés.
     Eu sempre fui daquele tipo de homens que gosta de marés bravas. Não é que, na verdade, o mar seja mau, mas, por vezes, quando está rabugento ou aborrecido, decide chamar um pouco mais atenção, na esperança de haver por perto algum marinheiro aventureiro, que se sinta tentado pela provocação das ondas que rebentam mesmo na sua frente, sabendo que não pode ou não deve mostrar-lhe que o consegue domar.
     É de uma grande capacidade de resistência controlar estes impulsos de valente marinheiro e não ceder às pretensões de um mar bravo, que grita com uma discrição falsa pelos seus navegadores, sedento de ser motivo do esforço físico. Eu dava-me já por satisfeito só por ter a capacidade de deixar aquela maré insistir em se exibir através de espetáculos de insinuações e, num ou outro desejo mais violento, de frontalidades.
     Deveras difícil, para um homem como eu, recusar uma mulher como aquela, tão persistente, mas tão merecedora de submissão. Eu podia nunca me ter interessado em visitar aquela praia, mas aquela mulher, em específico, intrigava-me por se mostrar tão limpa e tão apetecível e, no entanto, recuar tanto a maré. E, após tanto tempo a respeitar o seu espaço e a caminhar a seu lado, ela deixou de ser uma maré brava e vaza, para ser uma maré calma e cheia. Eu, contudo, divertia-me a soprar-lhe os ventos mais fortes, já com os pés calejados de sal de todas as vezes em que ela me refrescou um pouco; porque aquela mulher -- ah! Aquela mulher! Que mulher... -- tentava sempre conter a bravura das suas ondas, que outrora agitava descontente. Eu sabia que ela queria que eu a explorasse e ela sabia certamente que a sua agitação fazia enfatizar a minha atração por mares bravos -- mas ambos sabíamos que a sua praia era demasiado vigiada para que eu pudesse ao menos molhar minhas mãos dentro das suas curvas.
     Mas ela aproveitava cada brecha na segurança para me seduzir até si um pouco mais. Naquele vestido de cetim preto, ela havia deixado discretamente as suas ondas brilharem, tapando as extremidades a renda da mesma pecaminosa cor, como se fossem abas que dissessem, através de telepatia, "abertura fácil". As pernas, quais pedaços de bife, moviam-se de um lado para o outro, destapadas e suportadas pela negra madeira brilhante, que alongam os seus pés e a aproximavam ligeiramente mais da minha altura, conferindo-lhe, simultaneamente, uma elegância vulgar. Mas não era todo esse cheiro que mais emoção me provocava, mas sim o calor que todo aquele volume contido naquele cetim preto emanava, com uma força capaz de me fazer achar que quem está quente sou eu.
     E eu limitava-me a ficar sentado naquela cadeira, numa posição descontraída, oposta ao olhar malicioso que eu lhe oferecia em troco de todo aquele espetáculo, igualmente inocente. Eu jurava a mim mesmo testar os meus limites e resistir-lhe, até mesmo quando ela inclinou todo o seu volume na minha direção e, com as mãos apoiadas nas minhas coxas já ardentes, me sorriu, de olhos escuros e rasgados e sobrolhos mais escuros ainda e bem delimitados. E eu ali, a um palmo daquela mulher que me poderia encher as mãos e as horas, toda fácil e firme.
     Então, ela moveu rapidamente uma sobrancelha apenas, ofereceu-me o seu sorriso, mordeu-o e, antes que eu o pudesse roubar, levantou-se, virou costas e caminhou até à porta por onde me tinha arrastado antes. Parou de balancear o habitual charme e, já agarrada à maçaneta, atirou-me um olhar cortante, sorriu-me maliciosamente e passou subtilmente todo o meu objeto de contemplação pela porta, deixando temporariamente ao alcance dos meus olhos apenas aquele olhar, que me prometia algo mais. Intrigado pelos seus enigmas, vejo, então, a sua mão singela segurar, perigosamente, por uma ponta, um soutien branco, cuja renda eu juraria já ter visto naquela sala.
     Assim que a sua mão deixou cair aquele tecido de suporte, mistério e segredo, pareceu perder lentamente o resto das forças e deslizar. Assim que tudo o que restava de si naquela sala era aquele rastro a dois metros dos meus pés, o meu corpo deixou de me obedecer. Instintivamente, as minhas pernas ergueram-me daquela cadeira e eu submeti-me à influência sexual e amorosa que aquela mulher transbordava para mim. Abri a porta e ei-la, a fugir em passo apressado. Enganas-te se pensas que te safas desta, ouvi-me pensar.
     Rapidamente, estava já ela completamente cercada pelos meus braços, contra a parede mais próxima, naquele pátio deserto. O calor não emanava agora daquele peito que saltava, mas sim do seu bafo, verdadeiramente nervoso. Confusamente, molhou os lábios secos, mas eu não achei que a sua própria saliva fosse suficiente. Com os meus lábios encaixados nos seus e a minha língua a roçar na sua, eu senti as suas mãos geladas tremerem contra a minha nuca, enquanto que era impossível distinguir qual das duas respirações estava mais acelerada. Ao aquecer as minhas mãos debaixo daquelas aberturas fáceis de renda, eu desejei apenas que ela tivesse consigo outro vestido, porque aquele estava prestes a ser rasgado.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

12. Carta à pessoa que mais odeias/que te causou muita dor

Conteúdo para Adultos


Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?. 

    Um passo, dois passos. Uma pancada. Duas, três, quatro pancadas. Cinco pancadas. Seis, sete, oito, nove pancadas. Dez pancadas. Onze.
      A adrenalina percorre todo o meu corpo e arrepia toda a minha pele. Contorço o pescoço, numa tentativa de afastar o pensamento da memória. Custa-me relembrar, a sangre frio, sem aquecer.
      Olha bem para mim. Não pretendo intimidar-te, mas olha para mim, bem fixamente nos meus olhos. Sentes a raiva chegar até ti? Eu sinto-a sair de mim. Acreditas mesmo que o medo me enfraquece? Enganas-te. Oh, se te enganas! O medo faz-me violenta. Fortalece o meu lado animal.
      Tens, pois, a certeza de que pretendes continuar? Achas mesmo que, ao me tocar dessa forma, te respeitarei? Queres mesmo levar isto até ao fim?
       Pois então leva. Toca-me dessa forma pseudopossessiva. Sente-te poderoso. Faz comigo o que tens sempre feito e que o fazias com todos os outros -- e bate-me. Bate-me tanto quanto quiseres. Rasga a delicadeza que esconde, cinicamente, o pudor dentro de mim. Bate-me mais. Descarrega em mim os teus problemas. Bate-me, bate-me muito. Finge que, assim, eles passam a ser meus. Bate-me com força. Finge que o demónio está em mim e faz das tuas mãos água benta. Bate-me! Faz de mim o que tu quiseres.
       Veremos, no fim, qual de nós dois rirá.

domingo, 15 de janeiro de 2012

29. Carta à pessoa que queres contar tudo, mas estás demasiado receoso/receosa

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.


        O coração aperta e aquece todo o corpo. Lembra-me a sensação de estar apaixonada, mas, na verdade, talvez não seja por isso. A melancolia abala-me, e eu sei que algo está errado. Ou será que aperta porque, ao pensar no que me entristece, lembro-me do que sinto falta?
     Por vezes, confundo a realidade com a ficção. Imagino acontecimentos, personagens, e esqueço-me do que, de facto, acontece. Vivo a ficção que a minha imaginação produz e sinto-a como se fosse real. Igualmente, quando certos acontecimentos ocorrem na realidade, menosprezo-os e não os consigo sentir. Isso prejudica-me na realidade.
     Costumo sentir saudades de quando isto não acontecia -- dos tempos em que existia realidade, e só realidade, e eu era apenas prejudicada por estar nela. Mas isso, na verdade, nunca aconteceu. Eu sempre vivi a ficção e a realidade, e sempre confundi um e outro cenário. A diferença entre o passado e o presente (e esse? Existe?) é que agora eu tenho noção disto -- e outrora não. Agora eu consigo aperceber-me do que se passa comigo. Antigamente, eu poderia jurar que tudo aquilo era realidade -- e, para mim, era.
        Se, então, eu sei o que me está a acontecer e isso me prejudica, por que não o mudo? Eu já provei no passado ser capaz de alterar a ordem das coisas e, inclusivamente, mudar o meu comportamento, quando achava que o devia fazer. A grande oposição é: eu não sei se o quero fazer. Eu não quero trocar as cores de um mundo por um mundo que não me faz feliz.
        Eu não quero continuar no compromisso de atividades que não me dizem nada e que me fazem deixar para trás o que me faz deslizar de satisfação. Quero continuar a acordar todos os dias com a motivação de ser um novo dia, com oportunidades para fazer novas coisas, sem lamentar o frio que está lá fora ou as horas de sono que não dormi. Não quero continuar a acordar todos os dias e pensar que adorava não ter de sair da cama. Estou farta deste ritmo que o mundo me impõe, mas que em nada é meu. Quero partilhar com os outros as coisas que sei e, com os outros, aprender novas coisas. Quero continuar a escrever com a paixão de um amor gigante. Quero deixar de fazer batuques discretos com os meus dedos e tocar, efetivamente, um piano. Quero sujar as telas e as folhas com tintas e carvão. Quero viver com a pessoa que mais amo numa casa discreta no meio da floresta. Ultrapassar esta insetofobia que, irracionalmente, me bloqueia e voltar às raízes de toda a humanidade, à simplicidade tão pura e sincera que originou toda esta comunidade corrupta. Porque sim, eu encontrei alguém que me ama assim, com quem quero partilhar toda a minha vida. Alguém que não só conhece toda a minha estranheza, como também a acha bela. Tenho excelentes amigos, acredita, que também gostam de mim, assim como sou. Sempre duvidaste de haver por aí alguém que fosse, mas essa dúvida não era pelas outras pessoas, mas sim apenas tua. Tu nunca aceitaste os mais pequenos indícios da pessoa que eu poderia ser e nunca aceitarás que eu seja como sou. Nunca serás capaz de amar quem eu sou e, portanto, não compreendes como é possível que mais alguém o seja. Tens os olhos cheios de preconceitos que te impedem de ver para além do físico. Eliminas, logo à partida, qualquer hipótese de ser positivamente surpreendido.
       Gostava de ter o conforto monetário que me permitisse quebrar todas estas regras que me prendem a um mundo cheio de stress. Mas então surgem os meus conhecimentos de economia a relembrar-me de que o dinheiro não aparece, nem desaparece, apenas muda de local -- e que, para eu conseguir ter muito dinheiro e realizar estes meus sonhos, é preciso que, à minha conta, haja muitas pessoas que ficam longe de saber o que é sequer sonhar. E eu sei que, mesmo que eu não contribua para tal, há-de haver sempre alguém que o faça. Mas eu não quero ser essa pessoa. Não quero ser também culpada pelas injustiças que me revoltam. Não quero matar a beleza que encontrei dentro de mim.
       Mas eu sei que não sou a única a sentir estas coisas e a sonhar desta forma. Pelo contrário, tal como eu, há-de haver muita mais gente que, aparentemente, não tem nada de errado, mas que, no fundo, gostava de continuar a ser criança. Por que têm de ser as crianças sempre a única referência de quem corre, ri, brinca, festeja, é sincera e espontânea, canta e dança? Pois eu não quero crescer, não nesse aspeto, e deixar de ser feliz. E eu sei, eu tenho a certeza, que a maioria esmagadora das pessoas sente esta mesma insatisfação dentro de si. Por que, então, não nos unimos todos e nos revoltamos contra este mundo que corrompe as almas?

Soul Meets Body by ~CARUTOS on deviantART

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O Controlo Demente escolhe os Blogs Escritores do Ano de 2011

    Olinda Gil, uma seguidora anónima aqui do sítio, resolveu nomear cinco blogues que considerava muito criativos e com grande qualidade, para os Blogs Escritores do Ano de 2011.
    Como já devem estar à espera, para eu publicar isto, é porque fui nomeada. É verdade. É um lisonjeio enorme, sobretudo tendo em conta que eu nunca imaginei que alguém me pudesse vez alguma importância mais razoável, nem nunca imaginei sair da impopularidade do Blogger. Escrevia sem sequer achar que alguém leria. Ainda agora me sinto surpreendida. Novamente, muito obrigada.



A Casa do Alfaiate: A Casa do Alfaiate escolhe os Blogs Escritores do Ano de 2011



Eu resolvi fazer nomeações também:

domingo, 8 de janeiro de 2012

A Filha do Rei II

Em continuação d'A filha do Rei I.

    Não. Constança não era assim. Constança achava que a janela através da qual tinha vista para a origem da vida era a moldura mais bela que alguém poderia ostentar e, por isso, orgulhava-se em tê-la no seu quarto, a um metro da sua cama. Era-lhe sempre agradável não seguir os conselhos de Haleema, a aia de quem era mais próxima, e dormir de janela aberta. Quando a vinham chamar para a acordarem, já os galos tinham ajudado o vento a acordar Constança. Aquela brisa sempre fresca no seu rosto fazia-a inspirar fundo assim que abria os olhos e encarava um Sol tímido por detrás do habitual nevoeiro. Imediatamente, libertava um pequeno sorriso e esticava os braços, de punhos fechados, salientando o seu peito, como que numa exibição de recompensa à Natureza pelo bem estar provocado. De seguida, levantava o tronco e ficava, naquela tranquilidade matinal, a observar o mais real quadro que alguma vez tinha visto, deixando que a pureza dos campos a fortalecessem. Por vezes, ficava a ver os tecidos da sua cama de dossel voarem em coreografias místicas, em tons de azul, cinzento e branco.
     Acordar tão cedo quanto o Sol é que não era duma princesa, por isso sempre esticava os cobertores da cama, vestia uma capa quente, puxava o cabelo para o lado, saía do quarto, fechava cuidadosamente a porta de madeira e descia, sorrateiramente, a escadaria de pedra, para que não se apercebessem de estar a tomar a iniciativa de fazer o que uma pessoa ordinária faria, não tendo o seu estatuto. Constança achava que a única coisa extraordinária ali era a porcaria do estatuto, que lhe fora conferido sem ela ter responsabilidade de tal. Por isso, agia consoante o que queria e desejava, tanto às claras, como às escondidas. Ao chegar a cada piso de baixo tinha de se esconder e potencializar a sua audição e a sua visão, a fim de encontrar algum guarda sonolento que rondasse o castelo, mandado pela mãe, à procura da rebeldia da filha. Dulce chegara a ordenar a um guarda que ficasse de plantão no exterior da porta do quarto da filha, mas este, ao segurar Constança, levara um murro na cara, que lhe partira dois dentes da frente, e uma forte joelhada na zona sensível. D.ª Dulce Berenguer de Barcelona, como assim era chamada a mulher que lhe tinha dado a vida, mas não o leite, chegou a discutir consigo, mas sentiu-se mais intimidada do que a filha, que lhe apontou o indicador e jurou não deixar que a inibissem a esse ponto.
     Ao chegar ao rés-do-chão, caminhava apressadamente para a porta da cozinha, no fundo da divisão. As cozinheiras sentiam-se embaraçadas, largavam prontamente tudo o que tinham nas mãos, fechavam-nas no colo e baixavam as cabeças. Inicialmente, Constança tentava deixá-las mais à vontade, mas ao ver que eram as próprias criadas que persistiam em se autodiscriminar, não lhes dava importância e seguia o seu caminho, pela porta das traseiras. Aí, sentava-se no degrau que havia antes de pisar a terra relvada e contemplava o trabalho dos humildes senhores que só não estavam no seu lugar pelo azar de terem nascido das mulheres erradas, que lhes tinham dado a vida e o leite. Um moço, de calças arregaçadas e roupas encardidas pelo tempo, logo aparecia, com um balde com água. Era Martim, o filho do padeiro, e sempre lhe tinham encarregue o transporte dos alimentos. Tinham-se conhecido numa das vezes em que Constança agredira Afonso, por este ridicularizar os agricultores. Martim estava a par dos rumores e do pânico que a filha do Rei causava e ficava curioso de a ver. Constança tinha sido puxada pelo braço até à cozinha por uma das aias, que a repreendeu por agir como uma vândala. Assim que a aia saiu, Constança deitou-lhe a língua de fora e cruzou os braços, só os tendo descruzado para ir ter com Martim, escondido fora da porta, que a chamou e lhe disse que ela era um máximo. Desde então, tornaram-se grandes cúmplices e criaram um laço muito forte e um dos mais raros da Corte, a que Constança chamava de verdadeira amizade. E ali estava ele, sempre disposto a trazer-lhe a água que Constança agradeceria com um sorriso e um piscar do olho direito e levaria para o seu quarto, onde se lavaria e vestiria um dos seus vestidos.

sábado, 7 de janeiro de 2012

É magia, a Natureza que os rostos beija

     Nestes campos de onde te escrevo, o Sol cedo nasce e tarde se definha.
     Venho, erudita, falar-te dos campos onde o dourado muito dura e pouco raia.
     Aqui, exatamente de onde prolifero a absurdez do meu amor, sinto as plantas em mim -- ou serei eu um pouco delas? As plantas, pois, dançam ao som da melodia dos nortes, que norteiam o sul do destino.



     A sua cor confundia-se com a branca luz que eternamente a abraçava. Juntas dançavam, como dois espíritos que se encontram, ao fim de uma longa busca. No ar ondulavam, almas gémeas de um processo proibido.
     Rodopiava ela, qual fada que se solta, e liberta no ar pozinho cintilante, que esvoaça e paira como pássaros ao redor do ninho. Pois os ninhos perfumava e deixava o seu louro cabelo partilhar a leveza da lavanda distante, de um carinho natural expelido. As partículas despedaçavam-se do seu denso peito e contaminavam o aroma com a subtileza de um salto sem esforço, sem gravidade, de umas pernas carnudas e esbeltas, findadas nos pezinhos delicadamente esticados. Compara-se a uma fada que voa, difundido calor com um sorriso inocente e harmonioso.
     Então, regressa aos braços de quem dela cuida, deixando-a brincar ao luar, sabendo ser toda aquela encenação uma sedução espiritual que lhe faz docilmente.
     Nestes campos onde o vento me beija o rosto, é feiticeira, a Natureza.


Midnight Fiel by ~ChemicalSunflower on deviantART

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

5. Carta aos teus sonhos

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.

Following her dream by *duchesse-2-Guermante on deviantART

       Acordar todos os dias pode ser uma tarefa tanto ou quanto difícil.
     Eu pensava assim, nas épocas de apatia. Não é que fosse difícil levantar-me da cama e seguir uma rotina denominada enquanto normal, típica de todos os que se acham -- e que muitos assim os reconhecem -- grandes (assim os definem os padrões bege, preto e cinzento, bem como os rostos infelizes e frustrados, que são símbolo de riqueza, conforto, inteligência e maturidade -- o meu avô costuma chamar-lhes homens de linha). Tal como qualquer pessoa normal, eu levantava-me da cama e fazia exatamente as mesmas coisas que os ídolos e os heróis da minha sociedade faziam.
     A diferença era que eu não me orgulhava de seguir os ídolos da minha sociedade. Sociedade que nunca foi minha, verdade seja dita. Os meus olhos pertenciam-me, não à sociedade. Igualmente, pertenciam-me os pensamentos, não à sociedade. Porque eu não deixava que a sociedade fizesse deles seus, como fez a quase todos os que, tal como eu, agiam em razoável conformidade. Os gostos chegavam a todos nós, mas nem todos nós os consumíamos. Era por isso que vocês procuravam. Procuravam quem não se tinha conformado com os desejos da sociedade e se sentia vazio por não encontrar nada que o preenchesse.
     E eu prometi-vos nunca vos deixar nem vos vender. Fiz serões, gritei, chorei e jurei a pés juntos o amor que por vós nutria. E nutro.
     A dor não é de não vos ter porque não vos conheço. Eu conheço-vos, melhor do que ninguém. Eu tive-vos, mas vocês fugiram. Não fracassaram, mas despediram-se e abandonaram-me, deixando apenas uma caixa, não vazia, mas com uma cama bem requintada, com as mais confortáveis almofadas. Essa cama foi feita à vossa medida e agora aloja-se, vazia, em mim e vai suspirando pelos donos que a deixaram assim, por fazer, sem nada dizer antes da partida, deixando o mistério, a dúvida e a incerteza nos lençóis.
     Eu vou vos encontrar. Eu tenho de vos encontrar.