sábado, 11 de fevereiro de 2012

Odor Lisboeta a Putrefação

     Estrada abaixo, António calçou as pegadas molhadas do seu preto envernizado. Cada marca deixada era como um meteorito que colidia com o betão, causando ainda mais fendas. A água era a atmosfera que protegia as fendas de serem mais do que algumas fissuras moderadamente profundas.
     O cheiro a carvão das barraquinhas ambulantes de castanhas assadas misturava-se com os odores a suor que o aglomerado de trabalhadores e turistas expelia habitualmente, como um odor intrínseco. Poderia ter sido compreendido como um aconchego ou um realce estilístico, mas, na verdade, quando baixava a cabeça e enfiava o queixo no cachecol coloridamente riscado não queria aquecer a cara com o bafo preso pela roupa, nem exibir o cabelo castanho espigado na sua nuca, mas sim esconder os olhos da paisagem de água suja nas pedras da calçada.
     Desde que lhe disse que ela precisava de ser menos precipitada e de dar mais espaço a cada coisa, a relação entre ambos nunca mais foi clara. Ela encavalitava tudo aquilo que lhe dizia respeito e desarrumava tudo de propósito. António não podia virar a esquina que lá estava ela, a barafustar com algo. Quando ele lhe perguntava por que era assim, ela ficava ciumenta e mandava-o ir ter com a ex. Esperava, certamente, que ele a mimasse e mostrasse que a ex lhe era inferior.
     Ele, porém, sentia a culpa cair-lhe em cima. A ex, pelo menos, não se chateava com tanta facilidade, nem se adornava. Era naturalmente linda. Pobre, mas verdadeiramente simples. Emanava as cores de dentro de si e não atraía a si toda a espécie de gente. Mas António deixou-se levar pelo que os outros diziam e acreditou na adoração que todos os outros faziam à que viria a ser a sua esposa e maior dor de cabeça.
   Por isso, baixava a cabeça e acarretava com as birras da amada. Lá fundo, perguntava-se se era mesmo aquilo que queria para passar o resto da sua vida.
     Ah, Lisboa, como és complicada!

Lisbon ::4 by ~MisterKey on deviantART

5 comentários:

H. Santos disse...

Bravoooo

Existem muito mais historias destas do que deviam, é triste, mas não são mero acaso, são historias que acontecem devido ao desconhecimento das pessoas sobre o que realmente é importante para elas... E como o orgulho é maior que o bem estar, é visto como glorioso aguentar uma relação desnaturada, em detrimento de uma relação proveniente do Amor e saudável, tudo isso por pressões sociais, enfim, vive-se com máscaras, quem um dia cairão :(

Ps: Estás cada vez melhor gnomo :P

Anónimo disse...

H. Santos: Esta crítica, na verdade, foi dupla. Por um lado, eu critiquei isso, mas, subliminarmente, referia-me à organização das cidades e de como eu prefiro o campo. Lisboa aparece aqui personalizada, enquanto mulher precipitada, em oposição ao campo, enquanto mulher simples e sem pretensões.

Anónimo disse...

H. Santos: PS: Obrigada, ogre. :P

H. Santos disse...

Ahhh, percebi, muito bem conseguido ;)

Anónimo disse...

H. Santos: Danke. :P