O profundo descanso escuro em que me encontrava foi substituído por um vagão de luz branca azulada que se espalhava sobre o leito revolto em que dormia. Preguiçosamente, vi as minhas pestanas desvanecerem do meu campo de visão, permitindo-me encarar o despertar de um novo dia.
À minha frente, vi-te, caído, calmo e vulnerável. Os carnudos lábios onde eu me costumava deleitar estavam dormentes, vagamente separados, sem vida. A tua mão esquerda estava meio fechada, queda, contra o lençol branco em que te confortavas. A direita repousava mesmo ao lado da minha anca, como projeto inacabado de meu alcance.
Fiz a distância entre nós encurtar, a fim de me certificar que não sonhava, para te ter mais real, mais verdadeiro -- mais meu. Nunca o foste, porque a posse é uma ilusão. No final -- porque há sempre um final --, tudo se perde, duma forma ou doutra. Não há nenhum normativo legal que possa substituir as considerações morais -- e nenhuma ética capaz de sustentar a verdade de uma posse. Imediatamente, ouvi, ao longe, João Pedro Pais com o seu clássico ninguém é de ninguém, mesmo quando se ama alguém. Mas há algo que detemos garantidamente e que nem sempre perdemos: o amor. Os sentimentos que nutrimos são sempre nossos, uma vez que nós somos de nós mesmos, e o amor que temos é sempre nossa posse. A pessoa que amamos já não. E eu sempre tive essa noção contigo. Sempre soube que a cor de caramelo torrado que me seduzia pacificamente não era minha. Nunca foste meu, mas eu sempre te amei. Assim como eu também nunca fui tua, mas sempre me senti por ti amada. Isso sempre foi do consenso de ambos, o que permitiu que nunca houvesse crises de ciúmes entre nós, nem discussões acerca da obrigatoriedade ou legalidade da nossa relação, durante todos aqueles anos que tinham passado por nós, a correr. O amor é, sempre foi e sempre será livre. Só assim, livre e espontâneo, nos pode enraizar verdadeiramente a alguém e disponibilizar-nos a capacidade de voar, mesmo com a força gravítica que a física nos impõe.
Prendi o cabelo com o pauzinho chinês que me havias oferecido, há anos atrás. Silenciosamente, limitei-me a observar as graduações de castanho que a eumelanina da tua pele formava, com a luz que te embatia nas costas. Suavemente, senti o calor da tua respiração arrepiar os pêlos meu braço, subir, qual serpente, por mim acima, até à minha nuca. Com a mesma subtileza com que existias, desejei sentir a textura da beleza que me encantava. Percorri, com a ponta dos dedos da mão esquerda, a linha que vinha desde a tua cintura destapada. Passei pelo teu ombro e senti o teu pescoço quente, mas tu continuavas, que nem um anjo, profundamente adormecido. Ao tocar o teu rosto, senti a aspereza dos pequenos pêlos da tua barba e deixei-me fazer cócegas nos dedos. Tal como uma escovinha com pequenas agulhas, aquelas farpas pontiagudas massajavam-me e tranquilizavam-me.
No transe em que estava, não senti que acordavas. Vi os teus grandes olhos fitarem-me, com a surpresa de uma criança. Sorri, embaraçada.
- Bom dia, amor - proferi timidamente, como se essas três pequenas palavrinhas pudessem substituir uma justificação para estar a contemplar-te, qual pecado que ninguém comete.
De imediato, vi um terno e sincero sorriso esboçar-se nos teus lábios e não pude deixar de reparar que os teus dentes estavam tão brilhantes como se nunca tivessem sido usados. Acordaste os teus braços dormentes e as tuas mãos cercaram-me, puxando-me para ti. Ao encaixar a minha cabeça no teu pescoço, passei o meu braço por cima de ti e senti os teus braços a aconchegarem-me as costas, enquanto a tua mão esquerda me acariciava a cabeça e fazias os teus dedos entrelaçarem-se no meu negro e farto cabelo.
Desprendi a minha cabeça de ti, enquanto respirava profundamente, como quem vem à superfície, após um calmo mergulho. Não consegui impedir-me de sorrir enquanto descobria o meu rosto, até ora imerso em ti. Senti um calor enorme invadir-me as bochechas e desviei o olhar, para baixo. O teu braço direito deixou de segurar as minhas costas e a tua mão encostou na minha bochecha esquerda. Olhei para ti. Miravas-me fixamente, seriamente. Desfiz o sorriso embaraçoso que esboçava. A tua voz grave entoou nos meus ouvidos, aquecendo-me ainda mais:
- És linda.
Encostei o meu nariz ao teu e fechei os olhos. Ao tocar os teus lábios, envolveste-me com força e puseste-me em cima de ti. Senti tudo como se fosse novo, como se nunca te tivesse beijado antes. E, naquele calor único, soube que aquilo que nos unia era mais forte do que o poder de qualquer assinatura ou aliança.